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Xi Jinping e Vladimir Putin na abertura dos JO de Sochi-2014 |
Continua a dança de duplas Rússia e China de patins sobre o gelo da política mundial. Em Sochi, observamos com prazer mais um elemento na rotina desse dueto, cada vez mais harmonioso. Pode-se chamá-lo de “apoio elegante”. Atletas que não se intimidam diante de coisa alguma, exibiram a elegância sóbria de parceiros confiáveis.
O fato de que os parceiros têm bem desenvolvida compreensão mútua não é o seu único mérito. Paradoxalmente, a antipatia com que a dupla foi recebida pelos públicos estrangeiros contribuiu consideravelmente para o bom espírito de equipe.
As cataratas de fatos sombrios que foram despejadas no mundo antes do início das Olimpíadas de Pequim em 2008 e de Sochi em 2014 teriam de gerar, como geraram, uma resposta.
O trabalho imundo da imprensa ocidental contra os Jogos Olímpicos de Sochi é exatamente o mesmo que foi feito em 2008, quando tantos chineses manifestaram-se indignados, em todo o planeta. Esses fatos foram destacados na imprensa chinesa, que devotou considerável atenção à visita do presidente chinês Xi Jinping a Sochi. Alguns exemplos, recolhidos apenas de alguns veículos: “a nova guerra fria pela qual tanto anseiam os soldados do Ocidente”, “a perseguição à Rússia está indo longe demais.” E “crítica não deve sem confundida com hostilidade”.
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Projeto do Parque Olímpico de Sochi-2014 (clique na imagem para visualizar) |
Também interessante uma outra comparação que apareceu na imprensa chinesa. Apesar dos tumultos de março em Lhasa, em 2008, George Bush e Nicolas Sarkozy mesmo assim compareceram à cerimônia de abertura dos Jogos de Pequim; e Gordon Brown compareceu à cerimônia de encerramento.
Nada tem havido na Rússia sequer semelhante àqueles tumultos nos últimos dois anos; mas os “grandes” líderes ocidentais não deram as caras em Sochi. Daí colunistas e editorialistas extraíram conclusões completamente óbvias, de que o Ocidente está-se mostrando hostil à Rússia. Como resultado, entendem que a visita extraordinária de Xi Jinping a Rússia tenha de ser interpretada como movimento deliberado, estratégico.
Vladimir Putin manifestou seu agradecimento pela ajuda que lhe deu o presidente da República da China, à Rússia e a ele próprio, pessoalmente. No início da conversa, o presidente russo destacou que os chineses raramente viajam durante os feriados do Festival de Ano Novo, que é celebrado no Extremo Oriente dia 31 de janeiro, se não para visitar amigos ou parentes. “Recebemos sua visita a Sochi como a visita de um bom amigo”.
Não sei se todos que assistiram às cerimônias de abertura dos Jogos Olímpicos terão percebido, mas a delegação chinesa foi das raras que levava bandeirinhas russas, ao lado das bandeirinhas chinesas. Foi ou não foi gesto de amistosa solidariedade?
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Delegação da China desfila com pequenas bandeiras russas ao lado das bandeiras chinesas |
O fato de que os dois lados declararam que qualquer interferência nos assuntos internos de outros países seria inadmissível, ante a visita do líder chinês a Sochi parece vir carregado de extrema importância. E parece ter a ver com o apoio declarado e o encorajamento que o Ocidente tem dado aos rebeldes ucranianos, inclusive na recente Conferência de Segurança de Munique; a visita de Xi a Sochi está sendo vista como declarado apoio, por Pequim, à posição do Kremlin.
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Em Sochi, os dois presidentes estão discutindo vários temas, mas em primeiro lugar e sobretudo, discutem temas mundiais. Nesse ponto também, Moscou e Pequim têm abordagem comum ante vários problemas e conflitos. De fato, estão coordenando atividades na arena internacional com atenção crescente. Tanto no Conselho de Segurança da ONU como na Organização de Cooperação de Xangai, tanto em terra como no mar. No final de janeiro o cruzador movido a energia nuclear “Pedro o Grande” [Petr Velikiy], que integra a Frota Norte da Rússia, participou da segunda fase do transporte das armas químicas sírias, no comando da operação no Mar Mediterrâneo, com a fragata chinesa “Yancheng”.
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Cruzador leve russo Petr Velikiy (Pedro, o Grande) |
Esse ano, russos e chineses têm também uma extensa agenda de cooperação bilateral. Em maio, o presidente Putin fará visita oficial à República Popular da China e participará da reunião de cúpula da Conferência sobre Interação e Medidas para Construir Confiança na Ásia, que será realizada em Xangai. E está sendo organizado um encontro entre os primeiros-ministros dos dois países, que acontecerá na Rússia no outono.
Há grandes expectativas associadas aos números crescentes do comércio bilateral (o comércio entre Rússia e China já alcançou a marca de 90 bilhões de dólares norte-americanos) e à cooperação econômica. As áreas chaves são energia, incluindo os setores de petróleo e gás e de construção de usinas nucleares, as indústrias aeronáutica e automobilística, tecnologias de informação, cooperação tecno-científica e militar, e turismo.
Há rumores de que a discussão sobre preços de gás – negócios que, quando finalizados, gerarão contratos multibilionários para os dois países – já entraram na reta final. Considerado o clima funéreo da economia europeia e a estagnação geral nos mercados mundiais, os investimentos chineses serão passo importante e oportuno para a economia russa.
Os investimentos chineses podem acelerar a expansão econômica das regiões o Extremo Oriente da Rússia, pré-requisito para a integração daquela área na dinâmica Região do Pacífico-Asiático, que interessa ao desenvolvimento tanto da Rússia Trans-Ural como do país como um todo.
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Russia, China e Coreias - ligações ferrviárias sendo ampliadas (clique na imagem para visualizar) |
Russos e chineses estão em estreita comunicação, cada vez mais intensa, e Moscou e Pequim estão usando as esferas da educação e da cultura como catalisadoras de uma ampla cooperação humanitária. Rússia e China declararam 2014-2015 “Ano das Trocas Amistosas entre Jovens”. A cerimônia de lançamento desse projeto de diplomacia pública em larga escala acontecerá em São Petersburgo no final de março.
Em Sochi, os dois presidentes declararam que já trabalham na organização de eventos para comemorar os 70 anos da vitória sobre o fascismo alemão e o militarismo japonês na 2ª Guerra Mundial – comemoração conjunta em grande estilo, absolutamente adequada à situação complicada em que vive o mundo hoje. A China é o único estado aliado da Rússia na luta sem tréguas contra a “desconstrução” histórica daquela tragédia terrível, e para impedir que o mundo esqueça os horrores daquela guerra e o heroísmo de nosso povo.
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É simbólico que as praias do Mar Negro tenham sido beneficiadas por uma fatia da primavera chinesa, e é interessante que, quando pela primeira vez na história um líder chinês assistiu a evento esportivo fora da China, o evento estivesse acontecendo no ponto mais ameno do duro inverno russo. O fato de que Sochi seja inscrita no mapa de viagem dos turistas chineses também é importante. Há boa chance de que as legiões de turistas chineses que, com o tempo, acorrerão a Sochi, ajudem a Rússia a recuperar os investimentos feitos para a realização desses Jogos Olímpicos.
Numa das entrevistas que deu em território russo, o presidente da China, que é um erudito, mencionou a densa concentração de objetos culturais ancestrais na região em torno de Sochi, pelos quais os chineses sempre manifestaram reverência especial – como também, aliás, por pessoas e monumentos associados ao período revolucionário na Rússia.[1]
E até um certo atraso relativo da China nos esportes de inverno (esportes que na China, por definição, logo assumirão grande escala) é mais uma evidente oportunidade prática para cooperação entre os dois países, inclusive nas regiões da Sibéria, onde os invernos são longos e o ar é mais puro que nas montanhas Khingan. Por essa razão, dentre outras, a Rússia está apoiando a candidatura da China para acolher os Jogos Olímpicos de Inverno de 2022, apoio absolutamente natural; e movimento que pode ser mais um importante estímulo para a indústria do turismo na Rússia.
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Montanhas de Khingan, Norte da China - local proposto para os JO de inverno de 2022 |
O fato de que a dança em dupla de Xi e Putin, esquiadores experimentados, não esteja sendo mostrada, para conhecimento de todo o público telespectador do planeta, era e é obviamente previsível. Alguns, nervosos, estão trocando seus embaixadores, na Rússia, como na China.
Afinal, qualquer aproximação em aliança desses dois países (o que ainda não entrou em pauta) seria o pesadelo dos pesadelos da tradicional geopolítica atlanticista. Também é igualmente impalatável a ideia de mobilizarem-se os recursos da Sibéria para ativar a manufatura global (o que já está em pauta, mas só em escala limitada).
O mais necessário, talvez, seja descartar conceitos já ultrapassados e atualizá-los para os pôr em harmonia com as reais condições de um mundo em mutação; e livrar-se de preconceitos ideológicos.
Bem analisadas as coisas, parece ter sido o que escreveu o conhecido analista norte-americano Robert Kaplan, dentre outros, às vésperas dos Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi. Kaplan manifestou-se muito interessado nas vantagens de uma maior concentração de poder face à crescente anarquia que se observa no mundo; e concluiu que enfraquecer os governos autoritários na Rússia e na China criaria o risco de enfraquecer a democracia, fazendo aumentar a instabilidade e o separatismo étnico naqueles países, além de outros. Nesse contexto, a conclusão é lógica:
O que venha depois de Putin pode ser pior, não melhor, que Putin. E vale o mesmo para qualquer enfraquecimento da autocracia na China.
Como diz o ditado, temos de dar graças, até, pelas menores dádivas.
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Paisagem de inverno de um mirante das montanhas de Khingan , norte da China |
Não descarto, sequer, a possibilidade de que alguns detalhes e o contexto geopolítico dos Jogos Olímpicos de Sochi começarão a aparecer, com o tempo, nos livros de história. Ou na história da diplomacia. Mas não, provavelmente, em todos os países.
O tema do “Encontro Xi-Putin em Sochi, aos pés do Cáucaso”[2], ilustrado ao estilo das pinturas revolucionárias dos anos 1950s e 1960s já aparece em gravuras vendidas na República Popular da China e continua a ser encomendado aos artistas. Sabe-se lá sobre o que mais o dueto conversou. Com absoluta certeza não haverá vazamento por YouTube e todos os documentos estão guardados em local seguro.
Notas dos tradutores
[1] Sochi foi praticamente reconstruída por Stálin, em 1934; em sete anos, de 1932 a 1939, a população da cidade saltou de 17 mil para 72 mil habitantes. Construíram-se novas estradas, teatros, praças, hotéis e resorts, e a cidade ganhou as características que tem hoje.
[2] O primeiro encontro importante em Xi e Putin, aconteceu dias 22-24/3/2013. Foi a primeira visita oficial de Xi como presidente da China. Os leitores-consumidores de “informação” “jornalística” no ocidente ignoram completamente absolutamente tudo sobre esse encontro.
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Xi e Putin em março/2013 |
“O encontro absolutamente histórico e importantíssimo entre Xi e Putin aconteceu no mesmo dia em que todas as manchetes nos EUA foram dedicadas à viagem de Obama a Israel. Por isso, aquele encontro não foi registrado na mídia. Por que isso aconteceu é tema a ser investigado. Talvez tenha sido coincidência. Talvez não. Se não foi, o mais provável é que os norte-americanos tenham cuidado de distrair a atenção da opinião pública. Porque a visita oficial que Xi, já eleito presidente, fez à Rússia pode muito bem ter marcado o início de uma histórica e lamentável nova e potencialmente antiamericana aliança no Leste da Ásia. (...) Em conferência conjunta de imprensa depois do encontro, Xi e Putin enfatizaram que resoluções e vereditos aplicados contra as “potências derrotadas” (leia-se Japão e Alemanha) na 2ª Guerra Mundial, pelas potências vitoriosas (leia-se Rússia e China) não podem ser revertidos. O que isso sugere é coordenação e apoio mútuo entre Rússia e China na resolução de disputas internacionais e especialmente na ONU, onde os dois países têm poder de veto” (24/3/2013, Forbes, The Xi-Putin Summit, China-Russian Strategic Partnership, And The Folly Of Obama’s “Asian Pivot” [O encontro Xi-Putin, Parceria Estratégica Sino-Russa, e a loucura do “pivô para a Ásia” de Obama]..