O corpo negro ensanguentado e o olhar assustado que você na foto é do menino Alailton Ferreira, de 17 anos, cercado por um grupo armado com pedras, barras de ferro e pedaços de madeira. Momentos depois, ele foi alvo de um espancamento coletivo. Desacordado, foi levado ao hospital, mas não resistiu e morreu na noite de terça-feira (8).
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Foto - Facebook. |
Aos gritos de “mata logo” e de vários xingamentos, o espancamento aconteceu às margens da BR 101, na tarde do último domingo (6), no bairro de Vista da Serra II, cidade de Serra, há cerca de 30km da capital Vitória, no Espírito Santo. Só depois de duas horas de muita violência, a Polícia Militar chegou ao local, colocou o jovem na viatura e o levou até a Unidade de Pronto Atendimento. “Os policiais militares descreveram no boletim de ocorrência que foi necessário utilizar spray de pimenta para conter os populares” disse o delegado-chefe do DPJ, Ludogério Ralff.
Acusação de Estupro
O irmão contesta as acusações e diz que o adolescente sofria de problemas mentais: “Ele chamou a menina, ela se assustou e correu para chamar a família. Os familiares e vizinhos correram atrás dele. Por isso as pessoas falaram que ele era estuprador. Se ele quisesse roubar uma moto, teria feito no próprio bairro, mas ele nem sabe pilotar”. Segundo o tio do jovem, foi um ato de covardia. “Ele estava com uns problemas de saúde e ficava assustado com frequência”.
O morador Uelder Santos, 29, em entrevista para um jornal também colocou as acusações sob suspeita: “Ninguém viu esse tal estupro ou mesmo noticias da suposta vítima”.
“Peçam perdão a Deus pelo que fizeram”, diz a Mãe
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Foto - Diva Suterio Ferreira, mãe de Alailton. |
Em entrevista a um jornal, a mãe de Alailton, a doméstica Diva Suterio Ferreira, 46, disse que o filho teria sido vítima de uma injustiça: “Ele já foi preso por furto, usava droga, mas não estuprou ninguém, jamais faria isso”.
Cristã, disse que se apega a Deus para socorrê-la nesse momento difícil: “Meu filho era amado, sonhava em me dar uma casa. Dizia que queria um quarto para ele, um para mim e um para irmã. Minha filha, de 11 anos, só chora, tem medo de sair à rua depois do que aconteceu. Acredito na justiça divina. Peço que essas pessoas peçam perdão a Deus pelo que fizeram ao meu filho”.
Violência endêmica e elemento racial (nada) subjetivo
O escritório das Nações Unidas apresentou nesta quinta-feira (10) um levantamento sobre as taxas de homicídio em que conclui que as Américas são as regiões mais violentas do planeta. O Brasil está entre países mais violentos. Das 30 cidades mais violentas do planeta, 11 são brasileiras. Segundo a publicação, Maceió é a quinta cidade do mundo com mais homicídios por cada 100 mil habitantes. A cidade de Vitória do Espírito Santo, vizinha ao local onde Alailton foi assassinado por populares, é a 14ª da lista mundial.
Não gosto de suposições, por isso fico nas perguntas: qual seria o resultado de uma amostragem com o recorte racial das vítimas desses homicídios em toda América? Teríamos uma proporção parecida com a média brasileira, que aponta 70% de vítimas negras?
Não sei se Alailton estuprou alguém. Era mulher feita ou uma criança de 10 anos? Ambos os crimes são gravíssimos. Mesmo que tenha sido uma “apenas” uma tentativa ou ainda que o jovem tivesse problemas mentais, sem dúvida caberia alguma punição. E a Lei prevê. Mas jamais um linchamento. Jamais!
E pior: nada leva a crer que houve de fato o crime. Aliás, ao que parece (não sou investigador, nem gostaria), ele teria sim sido “vítima de uma injustiça”, como disse a mãe doméstica.
O fato de ser um menino negro teria sido um elemento potencializador do ódio coletivo e da precipitação de um julgamento instantâneo – acusação, julgamento, condenação e execução: Foi ele! Pega ele! Só pode ter sido ele!?
E se fosse um menino branco, a história teria tais requintes de crueldade e terminaria no cemitério?
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Alailton Ferreira |
A bala não é de festim, aqui não tem dublê!
O assassinato covarde do menino negro Alailton Ferreira me fez lembrar dois filmes norte-americanos muito famosos. O primeiro é o clássico “O sol é para todos”, de 1962, que conta a história de Tom Robinson (Brock Peters), um jovem negro que fora acusado de estuprar Mayella Violet Ewell (Collin Wilcox Paxton), uma jovem branca.
Atticus Finch, um advogado extremamente íntegro, interpretado por Gregory Peck – que viria ganhar o Oscar de melhor ator com esse trabalho, concordou em defendê-lo e, apesar de boa parte da cidade ser contra sua posição, ele decidiu ir adiante e fazer de tudo para absolver o réu. Nos Estados Unidos como aqui, sempre fora comum acusações de estupros e outros crimes recaírem sobre negros, sem que haja grandes contestações.
O outro filme, esse mais recente (1996), faz ainda mais sentido com o momento que vivemos, inclusive no nome: “Tempo de Matar”, que se passa em Canton no Mississipi, onde Carl Lee (Samuel L. Jackson), um negro que, ao matar dois brancos que espancaram e estupraram sua filha de 10 anos é preso, e um advogado branco Jake Brigance (Matthew McConaughey ) e Ellen (Sandra Bullock) uma obstinada estudante de Direito, ambos se voltam contra o preconceito e o racismo existente na comunidade daquela cidade para defender o acusado.
Já no fim da trama, quando tudo parecia perdido, afinal a cidade queria a condenação do acusado, no Tribunal Jake solicita a todos os presentes que fechem os olhos e ouçam a ele e a si mesmos, então ele começa a contar a história de uma garotinha que volta do armazém, e de repente surge uma “pick-up” de onde saltam dois homens e a agarram, eles a arrastam para uma clareira e, depois de amarrá-la, arrancam-lhe as roupas do corpo e montam nela, primeiro um, depois o outro, eles a estupram tirando toda a sua inocência com brutais arremetidas.
Depois de acabarem, e de ter matado qualquer chance daquele pequeno útero ter filhos, os dois rapazes começaram então a usar a garotinha como alvo, acertando-a com latas cheias de cerveja, cortando sua carne até o osso. Não satisfeitos, eles ainda urinaram sobre ela, e com uma corda fazem um laço e a enrolamo no seu pescoço e num puxão repentino a suspende no ar, esperneando e sem encontrar o chão até o galho quebrar e, milagrosamente cair no chão.
Nesse momento, eles a colocaram na “pick-up” e, ao chegar em uma ponte, jogam-na de cima da mureta, de onde ela cai de uma altura de 10 metros até o fundo de um córrego. Jake então pára a história e pergunta aos presentes se conseguem vê-la, se conseguem imaginar o corpo daquela garotinha estuprado, espancado, massacrado, molhado da urina, do sêmen deles e do próprio sangue, e depois abandonado para morrer…
E novamente repete para que todos façam uma imagem dessa garotinha, aguarda um instante e pergunta: “Agora imaginem que essa garotinha é branca”!
Carl Lee é inocentado pelo júri.
Ora, “impoluto escrevente”, me perguntaria um dos meus algozes sempre presentes nos comentários deste Blog: “Mas não está a criticar a ideia da justiça pelas próprias mãos? Contraditório o exemplo deste filme, não?”.
E eu responderia:
Sim e não.
Sim. E essa é a parte que não gosto no filme. Ele justifica a ideia de que, em alguns casos, pode-se aceitar a justiça feita pelas próprias mãos. E não podemos tolerá-la em hipótese alguma. Menos ainda quando o pressuposto é inexistente – como parece ser neste caso do Espírito Santo.
E não.
Não por que faz todo o sentido imaginar que, diante da violência sistemática, continuada e explícita contra a população negra, não seria absurdo imaginar que em algum momento pode haver reações, bastando para isso que aflore a percepção – por parte da população negra, de que vivemos sim um estado de desigualdades e de violência racial.
Mas se dirá: Loucura! Radicalismo deste blogueiro afro-lunático racialista! E diante da fúria democrata-gilberto-freyreana presente inclusive na parte bolchevique do mapa, diria por fim:
Sempre caberá o terrível e necessário pedido de reflexão feito pelo advogado branco, Jake Brigance (Matthew McConaughey ), em Tempo de Matar:
“Agora imaginem que essa garotinha é branca”!
Imagine um mundo onde as pessoas pudessem viver em paz.
Consegue?