sábado, 30 de janeiro de 2016

Brasil. O Pacto de Morte contra os Índios.

Entrevista especial com Roberto Liebgott.
O pacto de morte contra os índios e contra o Bem-viver. 

"As terras indígenas, base de sustentação física e cultural de comunidades e povos, são atrativas em função de suas potencialidades para geração de energia hidráulica, exploração de minérios, expansão da agricultura", destaca o militante da causa indígena.

Por João Vitor Santos e Ricardo Machado - Instituto Humanitas Unisinos (IHU On Line).


As lentes pelas quais os indígenas observam o mundo são incapazes de ver nas riquezas da natureza - o rio, a vegetação, os minérios - ativos financeiros. A terra não é apenas o espaço onde a atmosfera enche os pulmões e os pés tocam o solo, a terra é o elo entre o presente, o passado e aquilo que acreditam que será o futuro. "As terras indígenas, base de sustentação física e cultural de comunidades e povos, são atrativas em função de suas potencialidades para geração de energia hidráulica, exploração de minérios, expansão da agricultura - soja, milho, cana-de-açúcar - e da pecuária - criação de boi", problematiza Roberto Liebgott, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. 

A esquerda, não somente no Brasil mas em todo o continente, repete a cartilha que vai dos conquistadores aos regimes autoritários e não vê nada diante do olhos que não seja dar continuidade a um projeto de financeirização de tudo, inclusive das vidas humanas. "Aqueles que governaram ou governam o país há quase duas décadas ignoram os direitos dos povos indígenas e quilombolas. Na prática, são levados a pensar o Brasil a partir de conceitos e concepções que reconhecem as diferenças dentro de uma lógica mercantil", critica. "O bem-viver indígena não pode ser conquistado sem que haja uma radical mudança nas concepções e políticas destes tempos em que vivemos. E não se trata de construir o bem-viver para os indígenas, e sim de permitir que as concepções indígenas permeiem e reconfigurem as prioridades que temos assumido e as formas como temos lidado com o ser humano, com a terra, lugar comum sem o qual não temos futuro, nem esperança", completa.

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Roberto Liebgott é coordenador do Conselho Indigenista Missionário - Cimi-Sul.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - No contexto histórico, como avalia a política indigenista brasileira?

Roberto Liebgott - Uma das primeiras manifestações oficiais a respeito dos "habitantes das novas terras" foi feita pela Igreja Católica. Portugal necessitava de um posicionamento da Igreja sobre a possibilidade de submeter (ou não) à escravidão os seres "descobertos". O Papa Paulo III, no ano de 1537, emitiu uma bula intitulada a "Sublimus Dei", na qual reconhece que os "índios" seriam pessoas capazes de receber a fé católica.

Faço referência a este documento do século XVI para demonstrar que a "questão dos índios" já se colocava nos primeiros momentos da invasão europeia. Lá, naquele período, interesses coloniais sobre os corpos indígenas (a serem submetidos à escravidão) confrontavam-se com interesses sobre suas almas (a serem convertidas à fé cristã). A resposta do Papa confirma o anseio da Igreja para torná-los "cristãos" e, ao mesmo tempo, afirma a necessidade de assegurar-lhes a liberdade e a posse de sua propriedade. As três preocupações centrais manifestadas pela Igreja/Estado - almas convertidas, liberdade e propriedade - colidem com as expectativas coloniais que ao longo dos séculos teve como características principais a escravização, a exploração, a conquista, o domínio e o extermínio. Esses processos ligam-se ao domínio sobre os povos originários e sobre suas terras. As disputas territoriais vêm se processando ao longo destes mais de cinco séculos, através de diferentes meios e estratégias, com efeitos devastadores sobre as comunidades e povos indígenas.

Século XX

Já em um contexto mais recente, vemos que a política indigenista constituída no início do século XX sustentou-se na identificação dos "grupos indígenas" para promover sua remoção e confinamento em reservas que seriam criadas pelo Estado. Esta política de remoção estendeu-se nas décadas seguintes, alicerçada em um duplo objetivo: integrar os índios à comunhão nacional e entregar suas terras aos projetos de expansão econômica - para a construção de rodovias, ferrovias, hidrelétricas, para a instalação de mineradoras, madeireiras e a promoção da agricultura e pecuária. A remoção dos povos indígenas de suas terras tradicionais foi considerada fundamental para a implementação do projeto de integração nacional, pois se constatava que os "ditos índios" - como referiu o Papa Paulo III em 1537 - não estavam extintos e sua permanência nas terras seria um obstáculo para a sua exploração.

Remoções

As remoções consistiram em atos violentos e geraram um vergonhoso quadro de atrocidades - algumas delas estão registradas, por exemplo, no Relatório Figueiredo [1]. A política assimilacionista, claramente estabelecida no Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973) felizmente foi superada na Constituição Federal de 1988, especialmente através da presença expressiva dos índios durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. A atual Constituição redefine as relações do Estado com os povos indígenas: de tutelados, estes passam à condição de sujeitos de direitos individuais e coletivos. A Constituição reconhece também o pluralismo étnico e cultural e assegura aos índios o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, cabendo ao Estado demarcá-las.

Contudo, vale ressaltar que apesar dos avanços constitucionais, os governos das últimas décadas que administraram e administram o Estado negligenciam e negociam os direitos indígenas. Há em curso uma política enraizada em conceitos e concepções genocidas.

IHU On-Line - Como a esquerda compreende a questão indígena no Brasil?

Roberto Liebgott - Em outra entrevista em que disse que a esquerda no poder era volátil [2] - eu me referia ao poder de governança e não ao poder de decidir sobre como governar - pensei na trajetória de uma esquerda que vinha sendo construída a partir dos anseios e necessidades de uma população empobrecida e sedenta por um país mais justo e democrático. Mas o governo petista - por meio do presidente Lula - ao subir na rampa do Palácio do Planalto tornou voláteis essas aspirações, distanciou-se das bases que sustentavam o "projeto democrático e popular" e aderiu aos programas e plataformas políticas originalmente forjadas nos partidos de extrema direita. Além disso, o governo se tornou instável, incerto, inconstante e volúvel. Assumia um discurso público de vínculo ao passado de lutas e militância, mas, na prática, as políticas, com exceção daquelas meramente assistencialistas e eleitoreiras, foram direcionadas para o mercado financeiro e ao desenvolvimentismo predatório - assim como ocorreu no período da colonização portuguesa.

Políticas Públicas

As políticas públicas, ao longo de décadas, foram quase que invariavelmente fundamentadas na exploração dos recursos da natureza e na concessão de benefícios e isenções ao grande capital. Como se isso não bastasse, concedeu às "empresas brasileiras", especialmente às empreiteiras da construção civil (sendo a maioria delas estruturadas na ditadura militar), montantes extraordinários de recursos públicos, através do BNDES e da Petrobras. O projeto da esquerda se volatizava cada vez mais na medida em que o governo passava a investir nas chamadas "empresas brasileiras", exportando-as para os países mais pobres da América do Sul (Bolívia, Venezuela, Cuba) e da África. Hoje os governos "de esquerda" encontram-se "de joelhos" diante do sistema financeiro e de uma estrutura e sistema político alicerçado na corrupção.

Cegueira

A tal "esquerda" não conseguiu enxergar as diferenças étnicas e culturais no Brasil. E aqueles que governaram ou governam o país há quase duas décadas ignoram os direitos dos povos indígenas e quilombolas. Na prática, são levados a pensar o Brasil a partir de conceitos e concepções que reconhecem as diferenças dentro de uma lógica mercantil, sem, contudo, considerar seus direitos políticos e territoriais quando estes se confrontam com o modelo desenvolvimentista.

IHU On-Line - Em que medida os Poderes Legislativo e Judiciário entendem a questão indígena? Como tal entendimento fica evidenciado nas decisões tomadas?

Roberto Liebgott - Em minha opinião o Poder Legislativo de nosso país é um mercado livre, e os governantes devem submeter-se à tabela de preços imposta por este mercado. Cada projeto de lei é negociado de acordo com seu valor mercadológico. Nada passa sem que se obtenham dividendos financeiros. Não se exerce um mandato em torno de ideias e plataformas políticas, ao contrário, o eleito a qualquer das Câmaras Legislativas - estadual, municipal, federal - e ao Senado age de acordo com os dividendos a serem obtidos. As minorias, que exercem mandato de forma digna, acabam desprezadas e suas propostas rejeitadas.

Os povos indígenas, assim como a maioria da população brasileira, são vítimas deste sistema político no qual prevalecem os interesses econômicos e as pressões de setores que supostamente comandam a economia nacional, em detrimento dos direitos individuais e coletivos. Tudo, neste sistema, se converte em negócio e mercadoria. As terras indígenas, base de sustentação física e cultural de comunidades e povos, são atrativas em função de suas potencialidades para geração de energia hidráulica, exploração de minérios, expansão da agricultura - soja, milho, cana-de-açúcar - e da pecuária - criação de boi. As terras agricultáveis são visadas exatamente porque são entendidas como recurso para a expansão da produção de grãos e de carne.

Aniquilação

Neste contexto, os direitos indígenas vêm sendo confrontados, pois eles constituem como entraves, no entendimento dos setores dominantes, e os próprios índios são para eles um "problema", na medida em que atrapalham os planos de expansão produtiva e de um suposto desenvolvimento econômico. Dobrando-se a uma concepção desenvolvimentista, o governo federal tomou a decisão de paralisar as demarcações das terras reivindicadas pelos povos.

Projetos de lei e emendas à Constituição Federal são elaborados para aniquilar com qualquer possibilidade de que demarcações de terras sejam normatizadas pela Lei Maior do país. Só para se ter uma ideia da articulação e da força que se volta contra os povos indígenas no âmbito Legislativo, tramitam, hoje, no Congresso Nacional mais de 100 proposições que visam alterar artigos concernentes aos direitos indígenas. No Poder Judiciário, decisões isoladas tentam dar nova interpretação aos artigos 231 e 232 [3] da CF/1988 para tentar inviabilizar a aplicação destes dispositivos constitucionais. É o que se tenta, por exemplo, com a aplicação do chamado marco temporal.

IHU On-Line - Como compreender o que está por trás da PEC 215, que quer conceder ao Legislativo a prerrogativa de demarcar terras indígenas?

Roberto Liebgott - É inegável que se concedeu aos ruralistas um excessivo poder político. Em função disso, eles definem os rumos da política indigenista do governo federal e pretendem impor suas regras para as futuras demarcações de terras indígenas e quilombolas. A PEC 215/2000, e mais de uma centena de outros projetos de lei no Congresso Nacional, visam impor limites ao que a Constituição Federal determinou. A ação política dos ruralistas motiva, fomenta e legitima as mais variadas práticas de violência contra os povos indígenas. Nos últimos dez anos foram assassinados no Brasil 754 indígenas, sendo que 390 em Mato Grosso do Sul.

Pacto de morte

A não demarcação das terras é o que gera grande parte dos conflitos e das violências, em especial nos estados do Nordeste, Sudeste e Sul. De acordo com o Cimi, há 1.044 terras indígenas no Brasil, sendo que destas apenas 361 estão registradas. Outras 154 estão "a identificar" e 399 foram classificadas como "sem providências". Para a instituição, a morosidade das ações demarcatórias se deve a um "pacto" do governo federal com os setores da economia que pretendem usufruir das terras indígenas, em especial os ruralistas.

Sobre a PEC 215/2000, há que se dizer que faz parte da estratégia de inviabilizar os direitos constitucionais dos povos indígenas, fundamentalmente à terra. A proposta de Emenda à Constituição quer consolidar a ideia de que o Poder Legislativo deve orientar e determinar a condução da política indigenista no país - especialmente através da bancada ruralista. Por isso, pretendem impor que a demarcação de terras saia do âmbito do Poder Executivo e vá para o Legislativo. Com isso, todas as demarcações de terras indígenas e também quilombolas passariam pelo crivo e aval dos parlamentares que, se autorizarem uma demarcação, esta será feita através da aprovação de uma lei específica. E para cada demarcação terá de se fazer uma nova lei. 

Ou seja, os direitos indígenas ficarão submetidos aos interesses políticos de ocasião. Além disso, terras demarcadas ao longo das décadas poderão ser revisadas para atender a nova determinação constitucional (caso a PEC seja aprovada). E ainda, na proposta aprovada na Comissão Especial, que segue para o Plenário da Câmara dos Deputados, há a inclusão de dispositivos que viabilizarão o arrendamento das terras indígenas - que são bens da União- e com isso possibilitar que terceiros obtenham lucros sobre bens que não são seus. Incluiu-se ainda outro dispositivo que rompe com a autonomia e protagonismo dos povos, qual seja a retomada da categorização entre os povos, que propõe uma espécie de leitura e análise dos diferentes "estágios de desenvolvimento" e de inserção dos "índios" à sociedade nacional, desrespeitando o artigo 231 da Carta Magna, que reconhece aos povos indígenas suas organizações sociais, seus costumes, línguas, crenças e tradições. Retomam de forma desrespeitosa, conservadora e fundamentalista a lógica da tutela, da integração e da assimilação cultural.

Contradições

PEC 215/2000 incorpora o que vem sendo denominado, no âmbito do Poder Judiciário, de marco temporal da Constituição de 1988. Isso significa dizer que, se os povos ou comunidades indígenas não estivessem na posse da terra em 1988 ou não estivessem postulando a terra judicialmente ou em disputa física - o chamado renitente esbulho - perderam o direito à demarcação da área reivindicada. Sobre esta interpretação elenco três elementos jurídicos que, no meu entender, são os que causam as principais controvérsias nos julgamentos de tribunais referentes às demarcações de terras e que tomam como base o marco temporal: há, nos julgados dos tribunais, insuficiente entendimento conceitual e não há convergência no entendimento da aplicação do marco temporal nos processos que envolvem a demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas; há divergências entre os magistrados no tocante aos conceitos de direito indígena à terra - posse, ancestralidade, usufruto e bens da União - e posse e propriedade oriundos do direito civil; há desconhecimento quanto à aplicabilidade do direito em relação às diferenças étnicas, culturais e ao fato de os povos indígenas terem sido considerados sujeitos de direitos individuais e coletivos - plenamente capazes, portanto (Art. 232 CF/1988).

Entendo, assim, que o renitente esbulho, ao ser descolado da história de resistência dos povos e comunidades indígenas, constitui-se numa grave contradição, pois impõe aos indígenas uma responsabilidade que não lhes competia antes da Constituição de 1988, qual seja, a de ingressarem em juízo, uma vez que eles eram tutelados pelo Estado. Atualmente, com o fim da tutela expressamente estabelecido em nossa lei maior, o Poder Judiciário não procede a um chamamento dos povos, quando da discussão de processos que lhes dizem respeito. Por isso, é necessário reafirmar que quando o tema foi abordado no caso de Raposa Serra do Sol [5] (o renitente esbulho) o entendimento dos ministros serviu para assegurar a posse indígena sobre terras onde havia fazendas desde o início do século passado.

Incompreensão

Os juízes não entendem as concepções e o modo de ser de cada povo, nem as formas como eles se relacionam com 'os bens" materiais, culturais, imemoriais, históricos e com a terra. Os povos vinculam-se à ancestralidade, ao pertencimento étnico, à religiosidade, aos simbolismos e aos mitos - concepções sustentadas originariamente. E, ao não entenderem estas diferenças, cometem erros que podem, na prática, colocar em risco bens maiores: a VIDA e a existência de um POVO.

IHU On-Line - Quais são os desafios para fazer com que a sociedade civil compreenda a realidade de violações aos povos indígenas sem cair em falsos e vulgares problemas como, por exemplo, a ideia de que "índio quer terra e não quer trabalhar"?

Roberto Liebgott - Os desafios são de tornar mais visíveis e mais próximos das pessoas, os problemas vividos pelos povos indígenas. De um modo geral, imagina-se que o que afeta a vida indígena não nos diz respeito. Isso decorre, em parte, da representação estática de índios que se reproduz em muitos meios de comunicação, em muitos materiais didáticos, em peças publicitárias, em filmes, e que os coloca a distância, num espaço de exotismo. Também decorre de um entendimento de que os índios seriam responsáveis pela situação de pobreza por eles vivida, que se sustenta na ideia equivocada de que eles seriam improdutivos e por isso viveriam tempos de escassez. Se essa premissa fosse correta, nenhum trabalhador veria sua família passar fome, e haveria fartura para todos. Mas a realidade não é assim, não em um modelo de sociedade sustentada na apropriação privada, na acumulação e na competição.

A situação vivida pelos povos indígenas nos diz respeito não apenas porque estes vivem cotidianamente situações desumanas (e isso nos implica enquanto humanidade), mas também porque o não cumprimento das garantias constitucionais que lhes são concernentes gera, para todos nós, insegurança jurídica. Se um preceito constitucional pode ser ignorado, descumprido ou contrariado, todos os demais também podem, e isso nos implica a todos, como cidadãos.

A compreensão da realidade indígena passa, portanto, por uma desconstrução de estereótipos e de preconceitos que vêm sendo sustentados e fortalecidos historicamente e que, nestes tempos de produtivismo e de supremacia do discurso desenvolvimentista, se fortalecem, a exemplo da absurda ideia de que os índios não trabalham só porque não aderem inteiramente aos nossos modelos de trabalho, ou a ideia de que eles seriam obstáculos ao desenvolvimento porque não exploram a terra ao seu limite.

IHU On-Line - Em que medida a política neodesenvolvimentista representa um risco à ideia do bem-viver indígena? Como reverter a perspectiva de que o indígena é contra o desenvolvimento?

Roberto Liebgott - A lógica desenvolvimentista se confronta com a ideia do bem-viver indígena. A primeira apregoa que tudo deve se converter em recurso - ambiental, territorial, humano - e a segunda prioriza a vida. A lógica desenvolvimentista baseia-se na concorrência e incentiva as pessoas a gerir suas vidas como se estivessem gerindo uma empresa, a lógica do bem-viver indígena fundamenta-se numa visão de compartilhamento de espaços e de solidariedade entre as pessoas. A lógica desenvolvimentista faz com que vejamos em um rio um potencial de exploração hídrica, enquanto a lógica do bem-viver indígena foca as possibilidades de interação com o rio e com tudo o que nele habita (incluindo os seres que não podemos ver).

bem-viver indígena não pode ser conquistado sem que haja uma radical mudança nas concepções e políticas destes tempos em que vivemos. E não se trata de construir o bem-viver para os indígenas, e sim de permitir que as concepções indígenas permeiem e reconfigurem as prioridades que temos assumido e as formas como temos lidado com o ser humano, com a terra, lugar comum sem o qual não temos futuro, nem esperança.

IHU On-Line - Como compreender a barreira que torna o chamado "povo branco" inábil para entender a forma de vida indígena?

Roberto Liebgott - A questão de fundo, aqui, é que os povos indígenas não são e nunca foram considerados prioritários ao se traçar qualquer ação do poder público. Há um critério quantitativo que costuma permear as escolhas políticas - quantas são as pessoas assistidas, quantos são os eleitores - e, com base nesse critério, as comunidades indígenas muitas vezes são prejudicadas. A definição de responsabilidades no que tange à atenção diferenciada aos povos indígenas também é utilizada, em alguns casos, para justificar a inoperância ou a omissão de alguns órgãos públicos. Neste caso, em especial, estamos falando de um direito relativo ao transporte escolar, mas a desassistência se traduz também num precário atendimento em saúde, na falta de saneamento básico nas aldeias e, particularmente, na inaceitável condição, imposta a algumas comunidades, de vida em acampamentos provisórios, à beira de rodovias, resultante da morosidade nos procedimentos de demarcação das terras tradicionais destas pessoas.

IHU On-Line - Como discutir políticas públicas para os indígenas, de forma que não os exclua e também não os imponha uma cultura ocidentalizada?

Roberto Liebgott - Talvez o primeiro passo seja questionar a própria forma como se concebem e se estabelecem as políticas públicas destinadas aos povos indígenas. A base de sustentação de muitas destas políticas é assistencial, ou seja, elas se estruturam para assistir, para compensar a falta de algo muito mais imprescindível que é o acesso à terra e a garantia de seu usufruto exclusivo pelos índios. Uma política pública que tenha em vista a autonomia dos povos indígenas deveria ser iniciada com a garantia de participação destes em todas as etapas do processo - do planejamento à avaliação - tal como estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT e a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, da Organização das Nações Unidas - ONU. 

Uma política pública efetiva deve se estabelecer escutando as comunidades indígenas, entendendo suas demandas específicas, permitindo a ampla participação no processo, possibilitando que a tomada de decisão sobre os rumos dessas políticas esteja nas mãos dos povos indígenas. Existe uma legislação bastante avançada, por exemplo, no que diz respeito à educação escolar indígena, mas na execução dessa política pública, as comunidades ainda são reféns das regras, dos formalismos, da falta de conhecimento das secretarias, da imposição de modelos que, muitas vezes, confrontam saberes tradicionais e competem com espaços educativos próprios dessas comunidades. Isso porque, efetivamente, o controle sobre as escolas e seus processos não está nas mãos dos povos indígenas. E o controle não está em suas mãos porque se crê que exista uma cultura escolar (ocidental) que não pode ser alterada, e à qual os índios deveriam aderir.

IHU On-Line - Como avalia a situação dos índios no Rio Grande do Sul? No que se assemelha e se diferencia da realidade em outros estados do Brasil?

Roberto Liebgott - No Rio Grande do Sul as demarcações de terras estão paralisadas desde 2013. No ano de 2014 houve uma intensificação de ações e campanhas contra os direitos indígenas e quilombolas neste estado. Estas campanhas foram desencadeadas no âmbito dos poderes públicos, da mídia e de setores ligados ao agronegócio. Nos discursos disseminados nos meios de comunicação, especialmente por autoridades, os problemas causados pelas demarcações são explicados basicamente a partir de três argumentos: o primeiro afirma haver interesses de grupos estrangeiros nas terras indígenas e isso explicaria o empenho de ONGs e entidades indigenistas (de assessoria aos índios) na defesa das demarcações. O segundo afirma que se trata de muita terra para os "índios", porque estes "não trabalham" e/ou porque arrendam as terras que possuem. O terceiro argumento reitera que não se pode, a pretexto de demarcar terras para índios, cometer injustiças com os agricultores que alimentam a população.

Racismo Institucionalizado

Em um primeiro olhar, esses argumentos podem parecer bastante convincentes, porque estão naturalizados especialmente nos discursos midiáticos e cotidianos, mas eles têm sido utilizados como escudo para desviar a atenção de questões bem mais complexas (a exploração ao meio ambiente, favorecimento aos setores do agronegócio e o racismo institucionalizado). Antes de tudo, é necessário esclarecer que povos indígenas têm seus direitos originários (sobre as terras que ocupam) amparados pela Constituição Federal de 1988 - Art. 231. Tais direitos já estavam resguardados, antes da promulgação desta lei, através de outras normas que a precederam e que previam que terras indígenas fossem reservadas aos "índios". Basta lembrar que as primeiras demarcações de terras - na forma de reservas indígenas - ocorreram há mais de um século. Antes ainda, há registros de que os povos indígenas tenham obtido a garantia de suas terras por serviços prestados ao governo, por exemplo, na Guerra do Paraguai [4], em 1864. Portanto, não é nenhuma novidade a necessidade de se demarcar terras indígenas.

Sofismas

Em relação ao primeiro argumento elencado anteriormente, de que nos movimentos em defesa das demarcações de terras indígenas haveria algum tipo de complô de interesses estrangeiros contra a nação, basta lembrarmos que as terras indígenas são bens da União, que devem ser protegidas e resguardadas ao uso exclusivo dos povos indígenas. Este dispositivo legal é suficiente para mostrar que, se há interesses estrangeiros sobre terras brasileiras, certamente as áreas indígenas seriam as menos suscetíveis, porque qualquer investimento sobre elas, que não possua a autorização do Congresso Nacional, é considerado ilegal.

O segundo argumento contrário às demarcações, e aquele que se sustenta na ideia de que "é muita terra para poucos índios", filia-se a um entendimento de que as terras são recursos necessários ao desenvolvimento nacional, regional, local e que, por isso, devem ser produtivas (dentro de uma lógica desenvolvimentista e unilateral). Nessa direção, indaga-se sobre o porquê de os índios quererem "tanta terra" acionando-se uma lógica racista a partir da qual se avaliam as formas de viver e de trabalhar de todos os povos e culturas a partir dos critérios ocidentais e de uma racionalidade neoliberal, tomada como universal. Por essa ótica racista, só trabalha quem efetivamente faz a terra "produzir", quem atua sobre ela aproveitando seus potenciais; em oposição, aqueles que desenvolvem uma relação mais respeitosa com o ecossistema e uma atitude preservacionista são vistos como sujeitos que não trabalham, não têm ambição, não sabem dar valor (econômico) à terra.

A alegação de que se trata de muita terra para os índios pode ser contestada com o seguinte dado: o total de terras pleiteadas pelos povos indígenas no Rio Grande do Sul não passa de 0,5% da área do estado. De forma recorrente, lideranças Kaingang têm indagado, em momentos de reflexão: se um estado não consegue se desenvolver com 99,5% de seu território, que diferença farão esses 0,5% que correspondem às terras indígenas?

Arrendamento

Essa perspectiva se desdobra em outra, de que os índios não precisam da terra, por isso a arrendam. Mesmo que eventualmente se registrem casos isolados de arrendamento em terras indígenas, vale lembrar que esta é uma prática ilegal, passível de penalização, e que a fiscalização sobre as terras indígenas é de responsabilidade do poder público. A Constituição Federal instituiu, para as comunidades indígenas, o direito à posse permanente e o usufruto exclusivo sobre as terras que tradicionalmente ocupam (Art. 231, § 2º). O usufruto nas terras indígenas tem caráter coletivo e não individual e, portanto, o direito é das comunidades indígenas e não de cada pessoa individualmente, não podendo ser utilizadas por terceiros.

Agricultores

O terceiro argumento contrário às demarcações também pode ser desnaturalizado: trata-se da ideia corrente de que, a pretexto de demarcar terras para índios, não se poderia cometer injustiças com os agricultores que produzem o alimento da população. Para entender essa questão, é necessário retomar alguns aspectos históricos que nos levam à situação atual, em que índios e agricultores disputam as mesmas terras.

Nas primeiras décadas do século XX, sob argumentos positivistas e desenvolvimentistas, os governos empenharam-se em promover a ocupação territorial e a colonização de espaços considerados "devolutos". Neste período, a literatura sobre o tema registra a ocorrência de inúmeras práticas de "limpeza étnica", a partir das quais aldeias inteiras foram exterminadas. Centenas de outras comunidades foram expulsas de suas terras tradicionais e despejadas em outras localidades. Tais remoções forçadas ao longo da história originam os conflitos contemporâneos, posto que são estas as terras, loteadas e vendidas pelo governo do estado do Rio Grande do Sul em décadas anteriores, que agora estão sendo pleiteadas para demarcação. Tanto do lado dos povos indígenas e quilombolas, quanto do lado dos agricultores (que hoje residem sobre as terras), há muitos homens e mulheres que vivenciaram aquele período e que relatam os acontecimentos, indicando que nas terras pleiteadas para demarcação existem indícios materiais da presença indígena e de quilombos, como cemitérios, destroços de antigas moradias, restos de artefatos utilizados para caça, entre outros.

Inegável tradicionalidade

Pois bem, se a tradicionalidade da ocupação indígena e de quilombos não pode ser negada, valem os preceitos constitucionais de que estas terras - no caso das indígenas - são bens da União, que são inalienáveis e indisponíveis e que os direitos indígenas sobre elas são imprescritíveis (Art. 231, § 4º). Não é possível, portanto, imaginar que o erro cometido pelo Estado - ao disponibilizar para colonização e titular terras que não lhe pertenciam - não seja corrigido agora para evitar que ocorra uma injustiça contra os agricultores. É necessário exigir que o Estado responda por seus erros sem que se penalizem os agricultores, estes que, com seu suor, produzem alimentos. Eles têm direito a uma justa indenização e a uma alternativa viável, que deve ser apresentada pelo Estado, para continuar a viver da agricultura, em terras legalmente tituladas e compatíveis com seus modos de produção.

IHU On-Line - De que forma podemos entender o flagelo indígena no Brasil, a partir dos conflitos em Mato Grosso do Sul?

Roberto Liebgott - A situação dos povos indígenas em Mato Grosso do Sul é emblemática, e têm sido recorrentes, sistemáticas e cada vez mais intensas as práticas de violência. Nos últimos 12 anos, 390 indígenas foram assassinados no estado. Outros 707 cometeram suicídio de 2000 a 2014. Esses números, por si só, já indicam a gravidade desta situação. Frente a este quadro extremo, registra-se também a inoperância do governo, que deveria realizar as demarcações das terras para, assim, assegurar aos povos indígenas condições dignas de vida naquele estado. O que ocorre em Mato Grosso do Sul é genocídio. Este não é apenas o entendimento do Cimi, como também do Ministério Público Federal (MPF), da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e de órgãos como a Anistia Internacional, por exemplo.

É bom lembrar que as denúncias de assassinatos, suicídios, perseguições, ataques e muitas outras formas de violência têm sido sistematicamente apresentadas em relatórios do Cimi, e são também reiteradas em pronunciamentos do Ministério Público Federal. As violências se intensificaram, mas também se tornaram mais visíveis nas últimas décadas. Em Mato Grosso do Sul, os casos de violência se acentuaram quando algumas comunidades procederam a uma retomada de terras tradicionais das quais foram expulsas no decorrer do século XX, e sobre as quais se estabeleceram, de modo especial, os empreendimentos agropecuários.

Genocídio em Mato Grosso do Sul

As retomadas de terra em Mato Grosso do Sul colocam em evidência o direito dos índios à terra, direito este que vem sendo negligenciado pelo governo e contestado com veemência por setores do agronegócio. A demarcação das terras indígenas é apresentada, por setores anti-indígenas, como procedimento que gera insegurança jurídica. Contudo, ela é a expressão concreta do reconhecimento constitucional dos povos indígenas como coletividades com organizações sociais e culturais próprias, com línguas, crenças, tradições a serem respeitadas, cuja vida se concretiza sobre um território tradicional que o Estado tem o dever de demarcar e proteger. A insegurança se gera exatamente pela não demarcação dessas terras. Quando, ao contrário, o poder público garante a desintrusão de terras reconhecidamente indígenas, os problemas tendem a cessar, especialmente os vinculados à disputa de terras e violências, como nos casos das terras indígenas Raposa/Serra do Sol (RR), Marãiwatsédé [6](MT) e Caramuru Catarina-Paraguaçu [7] (BA).

Violência

Os alarmantes números da violência em Mato Grosso do Sul são, em certo sentido, a face mais visível de conflitos que se desenrolam em diversas partes do país. O Relatório da Violência contra os Povos Indígenas, publicado pelo Cimi e relativo ao ano de 2014 [8] mostra que ocorreram ataques a comunidades especialmente nas regiões Sul, Nordeste e Centro-Oeste. Algumas comunidades foram atacadas a tiros, colocando-se em risco a vida de crianças, jovens, idosos. Exemplos disso foram os ataques de pistoleiros contra uma comunidade Tupinambá, no estado da Bahia. No Rio Grande do Sul registrou-se a absurda situação de intolerância na qual a população do município de Erval Grande expulsou os indígenas que estavam acampados nas margens de uma rodovia estadual. Na ocasião, com apoio da Polícia Militar e sem ordem judicial, centenas de moradores do município se deslocaram para o acampamento dos Kaingang e os obrigaram a embarcar num micro-ônibus, que os transportou para a cidade de Passo Fundo, a mais de 130 km de distância. Seus pertences foram jogados sobre a carroceria de um caminhão e despejados diante da sede da Funai, em Passo Fundo.

As violências praticadas contra os povos indígenas em nosso país são avassaladoras. A dor, o sofrimento, as ameaças, as invasões, as torturas, as agressões cotidianas expressam, em síntese, o tipo de política indigenista praticada pelo governo, pois, ao fechar os olhos para acontecimentos tão graves, o governo os avaliza.

IHU On-Line - O que a cultura branca, ocidentalizada, pode aprender sobre a relação com a terra e o meio ambiente a partir da espiritualidade de povos indígenas?

Roberto Liebgott - Os povos indígenas têm muito a nos ensinar. Mas precisamos, antes de tudo, conhecê-los e respeitar o modo de ser de cada povo - suas culturas, costumes, crenças e tradições. Ao longo de mais de 25 anos de atuação missionária junto a muitas comunidades e povos pude perceber que todos possuem vínculos profundos com o sagrado, com a palavra e com a terra. Estes três aspectos da vida indígena se distanciam dos modelos de sociedades estruturadas no capitalismo, individualismo, primitivismo e na exploração.

Um primeiro aspecto que faço referência é o fato de não haver distinção absoluta, ou uma linha divisória que separa aspectos da vida natural e sobrenatural. Assim, as ações cotidianas são marcadas por certa ritualidade, as explicações para os acontecimentos têm uma base material e também imaterial, as razões para algumas práticas e condutas são de ordem profana e também sagrada. Trata-se, portanto, de uma racionalidade que nos escapa e que não se pauta nas divisões binárias a que estamos habituados (na composição de um pensamento ocidental, de base cartesiana). Cada pessoa precisa aprender a conviver e a estabelecer um equilíbrio entre duas naturezas - a humana e a divina. Aprender a conviver e a conhecer os outros seres que habitam os limites do território é uma das estratégias dos povos. Por exemplo, em uma comunidade guarani é indispensável a existência de uma casa de reza, a Opy. Nela, estreitam-se os vínculos com o Sagrado, realizam-se os rituais mais importantes, estabelecem-se as condições para se ter saúde, realizam-se os processos de nomeação e de cura.

Palavra

Um segundo aspecto que me parece comum entre os povos diz respeito à palavra, um importante elemento de constituição da pessoa e de elaboração contínua do modo de viver. Faço referência a estudiosos como Nimuendajú [9] (1987) e Melià [10] (2004), que estudaram profundamente a cultura Guarani e que nos ensinam que os Guarani são "o povo da palavra" e a prática de escutar e de falar configura sua organização social, política, religiosa.

A palavra tem grande relevância na vida dos povos indígenas, pois são constitutivas da própria existência das pessoas. Nas relações estabelecidas, a palavra é um componente central (não apenas como meio de comunicação, mas como possibilidade de criação de algo). Ela se converte em conselhos e ensinamentos (dos pais para os filhos, dos anciãos para os jovens, e assim por diante).

Um terceiro aspecto que considero fundamental e que pode servir como referência para a sociedade envolvente é o vínculo dos povos indígenas com a terra. Tratam-na com respeito, como mãe, fonte de vida, lugar onde se restabelecem elos entre as pessoas e seus ancestrais, onde se cultiva a porção divina que vive em cada pessoa e onde se organiza o bem-viver. Por isso, precisa ser amada e protegida, assim como todos os seres que nela vivem e dela dependem, como os animais, as plantas, as matas, as águas...

*Entrevista publicada originalmente na revista IHU On-Line, Nº. 478, de 30-11-2015.

Notas:

[1] Relatório Figueiredo: relatório de mais de 7 mil páginas produzido em 1967 pelo procurador Jader de Figueiredo Correia a pedido do ministro do interior brasileiro Afonso Augusto de Albuquerque Lima. Ele descreve violências praticadas por latifundiários brasileiros e funcionários do Serviço de Proteção ao Índio contra índios brasileiros ao longo das décadas de 1940, 1950 e 1960. (Nota da IHU On-Line).

[2] A entrevista referida é "O desenvolvimentismo não combina com princípios éticos e humanitários", concedida por Roberto Liebgott e publicada na IHU On-Line, nº 413, de 01-04-2013, disponível em http://bit.ly/1Ok24Nz. (Nota da IHU On-Line).

3] A íntegra da Constituição Federal de 1988 está disponível em  http://bit.ly/1Ie6PHl   -(Nota da IHU On-Line)

[4] Guerra do Paraguai: estendeu-se de dezembro de 1864 a março de 1870 e foi o maior e mais sangrento conflito armado internacional ocorrido no continente americano. O conflito teve início quando o governo de Dom Pedro II interferiu na política interna do Uruguai. A reação militar paraguaia disparou a Guerra. (Nota da IHU On-Line)

[5] Raposa Serra do Sol: área de terra indígena (TI) situada no nordeste do estado brasileiro de Roraima, nos municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã, entre os rios Tacutu, Maú, Surumu, Miang e a fronteira com a Venezuela. É destinada à posse permanente dos grupos indígenas ingaricós, macuxis, patamonas, taurepangues e uapixanas. Raposa Serra do Sol foi demarcada pelo Ministério da Justiça através da Portaria Nº 820/98, posteriormente modificada pela Portaria 534/2005. A demarcação foi homologada por decreto de 15 de abril de 2005, da Presidência da Republica. Em 20 de março de 2009, uma decisão final do STF confirmou a homologação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, determinando a retirada dos não indígenas da região. Nas Notícias do Dia do sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU é possível ler diversas entrevistas especiais sobre o tema. (Nota da IHU On-Line)

[6] Marãiwatsédé: terra indígena localizada nos municípios de Alto Boa Vista, São Félix do Araguaia e Bom Jesus do Araguaia, no Estado do Mato Grosso, Brasil. (Nota da IHU On-Line)

[7] Terra indígena Caramuru-Paraguaçu: é uma terra indígena de usufruto do povo pataxó hã-hã-hãe, localizada no sul da Bahia, no Brasil. Possui 54.105 hectares e foi delimitada em 1937 pelo Serviço de Proteção ao Índio. Em 2005, habitavam a terra aproximadamente 2.147 índios, dos quais 1.139 eram homens e 1.008 eram mulheres. (Nota da IHU On-Line)

[8] A íntegra do Relatório está disponível em http://bit.ly/1T9TO22. (Nota da IHU On-Line)

[9] Curt Nimuendajú (1883-1945): nascido Curt Unckel, foi um etnólogo de origem alemã que percorreu o Brasil em meio aos índios por mais de 40 anos. Quando jovem, foi aprendiz na fábrica de lentes Zeiss na Alemanha. (Nota da IHU On-Line)

[10] Bartomeu Meliá: jesuíta espanhol Bartolomeu Melià, pesquisador do Centro de Estudos Paraguaios Antonio Guasch e do Instituto de Estudos Humanísticos e Filosóficos. Sempre se dedicou ao estudo da língua guarani e à cultura paraguaia. Doutor em ciências religiosas pela Universidade de Estrasburgo, acompanhou e conviveu com os indígenas Guarani, Kaingang e Enawené-nawé, no Paraguai e no Brasil. É membro da Comissão Nacional de Bilinguismo, da Academia Paraguaia da Língua Espanhola e da Academia Paraguaia de História. 

Entre suas publicações, citamos El don, la venganza y otras formas de economia (Assunção: Cepag, 2004). Confira a entrevista As missões jesuíticas nos sete povos das missões, concedida por Melià à edição 196 da revista IHU On-Line, de 18-09-2006, disponível em http://migre.me/vMqUNa noite de 26-10-2010 Meliá profere a conferência A cosmologia indígena e a religião cristã: encontros e desencontros de universos simbólicos, dentro da programação do XII Simpósio Internacional IHU - A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade. Confira a programação completa do evento em http://migre.me/vMs5. Confira, na edição 331, uma entrevista com Meliá, intitulada "A história de um guarani é a história de suas palavras", disponível em http://migre.me/MqPH. Confira, ainda, o Perfil de Melià, publicado em http://migre.me/2pf5p. (Nota da IHU On-Line). 


sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Você sabia que a diferença de classes no SUS é inconstitucional?

29 de janeiro de 2016
SUS10_Bahia

Márcia Trivellato, via JusBrasil em 20/1/2016.

Apesar de a maior parte da população ser usuária do SUS, a esmagadora maioria não sabe sobre alguns de seus direitos referentes a este plano de saúde público. Neste texto, entenda o que é a diferença de classe no SUS. E mais: saiba se este tipo de atendimento é inconstitucional.

DESCOMPLICANDO O DIREITO

1) Quais os princípios norteadores do SUS?
Universalidade, integralidade e equidade.

2) Quais hospitais prestam os serviços através do SUS?Hospitais públicos e hospitais particulares contratados ou conveniados.

3) O que é diferença de classe?É a possibilidade de melhoria no tipo de serviços (acomodação do paciente e escolha do profissional da preferência do paciente) mediante o pagamento da respectiva diferença.

4) Por que a diferença de classe é uma prática inconstitucional?Por dois motivos:
a) fere o princípio da equidade; e
b) poderá ter como consequência a piora do SUS, uma vez que incentivará o pagamento por melhores serviços.

5) Qual o posicionamento do Ministério da Saúde?Concorda com a inconstitucionalidade da diferença de classe (Portaria 113/1997).

6) Em tratamentos particulares é permitida a diferença de classe?Sim, pois cada paciente arcará com as despesas que puder e quiser custear.

ENTENDENDO O DIREITO

1) Quais os princípios norteadores do Sistema Único de Saúde (SUS)?

De acordo com a Lei 8.080/90, que regulamenta o SUS, são princípios básicos deste sistema:
a) Universalidade: prestação de serviços para todas as pessoas;
b) Integralidade: os serviços devem ser prestados em todos os níveis, independente do grau de complexidade;
c) Equidade: apesar de os serviços serem prestados em todos os níveis, eles deveram ser realizados de maneira idêntica nos casos similares.

2) Quais hospitais prestam os serviços através do SUS?Os serviços do SUS são prestados através dos hospitais públicos, bem como de hospitais particulares contratados ou conveniados.

3) O que é a diferença de classe?A diferença de classe é uma pratica que consiste na possibilidade de melhoria na prestação de serviço (por exemplo: melhoria na acomodação, escolha do profissional da preferência do paciente etc.) mediante o pagamento de determinada quantia.
Esta quantia que deverá ser paga equivale à diferença entre os valores cobrados para tratamentos particulares (valores mais altos) e os valores pagos pelo Poder Público, quando o serviço é prestado pelo SUS (valores mais baixos).
Exemplificando: se o tratamento particular tivesse o valor de R$10.000,00 e o Poder Público pagasse R$8.000,00 pelo serviço prestado pelo SUS, para que João conseguisse a diferença de classe ele precisaria pagar o valor de R$2.000,00 (10.000,00 – 8.000,00 = 2.000,00).

4) A diferença de classe é uma prática inconstitucional? Por quê?Sim. Em primeiro lugar, esta prática fere um dos princípios norteadores do Sistema Único de Saúde, qual seja o da equidade, no qual todos os pacientes devem ser tratados de maneira idênticas em casos similares.
Além disto, a diferença de classe poderá trazer como consequência a piora do serviço público de saúde, uma vez que os seus funcionários serão incentivados a oferecer péssimas atividades, no intuito de que os pacientes queiram pagar por esta prática inconstitucional.

5) Qual o posicionamento do Ministério da Saúde?Assim como a Constituição Federal, a Lei do SUS e as jurisprudências (entendimentos de juízes), o Ministério da Saúde proíbe a prática da diferença de classe na Portaria 113/1997.

6) Em tratamentos particulares é permitida a diferença de classe?Sim, pois, nestes tratamentos, cada paciente pagará pelos serviços com os quais puder arcar e com os quais quiser arcar.

Márcia Trivellato é advogada, pós-graduanda em Direito de Estado pela Faculdade Guanambi/BA e membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

Leia também:


Link original desta matéria: http://limpinhoecheiroso.com/2016/01/29/voce-sabia-que-a-diferenca-de-classes-no-sus-e-inconstitucional/

China. Dragão de Seda, a caminho pela Estrada Persa.



Traduzido por Vila Vudu.

Xi veio, Xi viu, Xi papou todos os negócios que realmente interessam. O tour do presidente chinês Xi Jinping pelo sudoeste asiático – Arábia Saudita, Irã e Egito – pode ser facilmente vendido em qualquer canto do mundo como aquele típico estilo chinês de ganha-ganha.

Na arena das Relações públicas, Xi fez serviço de primeiríssima, acrescentando lustro e brilho extras à imagem da China como potência global. Pequim acertou todas, diplomaticamente, em todas as frentes e sob quaisquer critérios, acrescentando camadas e mais camadas de segurança energética (mais de metade do petróleo da China virá do Golfo Persa), ao mesmo tempo em que expande mercados para as exportações chinesas e as relações comerciais do país, em geral.

No Irã, Xi supervisionou a assinatura de 17 acordos político-econômicos, ao lado do presidente Hassan Rouhani do Irã. Mais um golpe diplomático certeiro: Xi foi o segundo líder de país membro do Conselho de Segurança da ONU a visitar Teerã depois de firmado o acordo nuclear em Viena, no verão passado; o primeiro foi o presidente Putin, da Rússia, em novembro. A observar, a crucial interação Rússia-China-Irã.

Para deixar tudo absolutamente claro, Xi fez uma declaração imediatamente antes de chegar a Teerã, confirmando o apoio de Pequim ao ingresso do Irã como membro da Organização de Cooperação de Xangai (OCX). Assim se solidifica, para o bem, esse trio de parceiros estratégicos a trabalharem pela futura integração da Eurásia.

Claro, todo esse processo circula em torno de “Um Cinturão, Uma Estrada”, nome oficial chinês da visão “Nova Rota da Seda”, amplíssima, enorme. Nenhum outro núcleo, além de Rússia-China, oferece tal potencial em termos de cooperação bilateral; o Irã, assim como quando a antiga Rota da Seda unia a China Imperial e a Pérsia Imperial, é o entroncamento capital que une a Ásia com a Europa.

A caravana high-tech de Xi parou primeiro na Arábia Saudita e no Egito – no mundo árabe. 

A mensagem de Xi não teria como ser mais translucidamente clara “Em vez de buscar ‘procuradores’ no Oriente Médio, nós promovemos conversações de paz; em vez de buscar qualquer esfera de influência, chamamos todos os partidos a se unirem no círculo de amigos para a iniciativa Cinturão e Estrada”.

Como Xi ainda estava, oficialmente, em terras árabes, Pequim lançou oficialmente um “Documento sobre [nossa] política árabe“. É o primeiro do gênero, traçando a história da interação China-Mundo Árabe desde a antiga Rota da Seda até a criação do Fórum de Cooperação Estatal Sino-Árabe [orig. Sino-Arab State Cooperation Forum], em 2004. E mesmo antes de falar à – fraturada – Liga Árabe no Cairo, Xi enfatizou mais uma vez: o que interessa à China é cooperação “ganha-ganha” por todos os lados.

Tradução: businessbusinessbusiness. E nada de interferência chinesa na esfacelada política do Oriente Médio.

A ofensiva diplomática de Xi, desdobramento colateral de “Um Cinturão, Uma Estrada”, tem o objetivo de, nada menos, reconfigurar o Movimento dos Não Alinhados – do qual a China é empenhado defensor e divulgador global – no contexto da emergente nova arquitetura financeira, centrada na globalização do yuan.

Aí se incluem o push para que o yuan passe a ser moeda mundial de reserva; e mecanismos como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, BAII [Asian Infrastructure Investment Bank (AIIB)] e o Fundo Rota da Seda, muito mais afinados com as necessidades do mundo em desenvolvimento que o FMI, o Banco Mundial e, inclusive, que o Banco Asiático de Desenvolvimento [Asian Development Bank (ADB)].

Relação ganha-ganha, para a China, no que tenha a ver com o Oriente Médio Árabe implica preços de commodities chaves denominados em yuan – desenvolvimento de longo prazo, mas, na essência, inevitável. E Pequim tem os olhos postos não só na Arábia Saudita, mas em todo o Conselho de Cooperação do Golfo, CCG – o qual é o centro financeiro de facto para África, onde a China tem presença massiva, com a África Ocidental, além do mais, conectada à Rota Marítima da Seda.

boom e respectivas desvantagens - O Irã pós-sanções, chegado extenuado até ali, só tem a ver com (re)integração em largas fatias da economia global. Mas a China já estava no Irã, mesmo antes de as sanções serem levantadas.

O Irã quer aumentar a produção petroquímica, até 2025, para 180 milhões de toneladas. O investimento chinês será chave. Segundo relatório recente feito pelo grupo escocês Wood Mackenzie de pesquisa e consultoria global em questões de energia, minérios e mineração, o Irã pode atrair cerca de $70 bilhões, para seus projetos petroquímicos.

No front de energia alternativa, o Irã tem capacidade para gerar 40 mil megawatts (MW) de energia elétrica, a partir do aproveitamento de seus recursos de vento e sol. Não pode haver dúvidas de que empresas chinesas lá estarão.

Como estado-membro do Tratado de Não Proliferação, o Irã continuará a usar energia nuclear para finalidades pacíficas. Empresas chinesas já são parceiras no projeto de redesenhar o reator Arak de água pesada, e estarão envolvidas na produção de isótopos para finalidades médicas e dessalinização de água do mar.

Também são absolutamente certos outros investimentos em mineração. Segundo o World Mining Congress (WMC), China e Irã foram 1º e 10º maiores produtores de minério no mundo, em 2013. O Irã tem mais de 7% de todas as reservas confirmadas de minério do mundo, mas apenas 20% delas já estão em desenvolvimento. Estrangeiros têm agora licença para operar minas iranianas por 25 anos – e a China lá estará.

Um Cinturão, Uma Estrada tem a ver, sobretudo, com a ferrovia para trens de alta velocidade. Assim sendo, não é surpresa que a remodelação e a expansão da rede de ferrovias iranianas seja item essencial da Declaração Conjunta sobre Ampla Parceria Estratégica entre Irã e China.

Claro que os avanços ao longo da(s) Nova(s) Rota(s) da Sede não se darão sem incontáveis obstáculos.

Ninguém ainda conhece todos os detalhes da parceria estratégica Irã-China; Teerã não se contentará com servir só como via de trânsito para as exportações chinesas: quer ser parceira chave transeurasiana. A China é membro da Organização Mundial do Trabalho; o Irã ainda não é membro-pleno. A China está no centro de muitos acordos comerciais, e o Irã só participa de alguns poucos acordos.

Cooperação com os “-stões” da Ásia Central pode ser façanha dificílima – dado que alguns, como o Uzbequistão, são muito ‘exclusivos’ quanto às próprias práticas econômicas. E uma relação complexa, multivetorial, entre Teerã e Ankara ainda é trabalho em andamento; a Turquia, afinal, conecta fisicamente a Ásia à Europa.

Mestres geoestrategistas - Em termos geopolíticos, quem determinou o tom ao encontrar-se com Xi, foi o Supremo Líder do Irã, Aiatolá Khamenei. A China, disse o Supremo Líder, é país “merecedor de toda a confiança”; o estabelecimento de “relação estratégica de 25 anos é plenamente correto e acertado”; e por último, mas nem por isso menos importante, “a República Islâmica do Irã jamais esquecerá a cooperação que recebeu da China, durante os anos das sanções”.

De modo sutil, mas muito firme, o Aiatolá Khamenei não deixaria de se referir à absoluta diferença que há entre Irã e Arábia Saudita, na área absolutamente crucial – para a China – da segurança energética: “O Irã é o único país independente na região no qual todos os demais países podem confiar na área de energia, porque, diferente de muitas outras, a política energética do Irã não sofre qualquer influência de fator não iraniano”.

Resumo da história é que, para Pequim, uma parceria estratégica com o Irã é questão vital de segurança nacional. Ainda mais que isso, em termos geoestratégicos, Pequim vê o Irã como entroncamento-eixo essencial no Sudoeste da Ásia e na Eurásia, o que serve como contrapivô ao “pivô” norte-americano e à hegemonia naval dos EUA, que Washington tanto propagandeia. Isso implica pleno apoio de Pequim a um Irã poderoso, no arco que se abre, do Golfo Persa ao Mar Cáspio: todas essas rotas terrestres e marítimas – que interessam ao projeto Nova Rota da Seda – são vitalmente importantes para a China.

Não há visão de Nova Rota da Seda que se realize plenamente, sem ampla e abrangente parceria estratégica Irã-China. Xi e a liderança em Pequim não cuidaram só de solidificar essa parceria: num amplo movimento de varredura. Eles como que a empurraram um degrau para cima e ampliaram o escopo do que alguns analistas iranianos definem como a teoria de Khamenei, do “realismo defensivo” para relações internacionais, e converteram a parceria em um anel de proteção de facto em torno de interesses geoestratégicos da China.

Movimento magistral. E está tudo andando conforme o plano (de Pequim). O próximo passo é o Irã como membro pleno da Organização de Cooperação de Xangai. Integração eurasiana, aqui vamos nós.

Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como:  Sputinik, Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today e Al-Jazeera.



Direitos Humanos - Entrada de transexuais em universidades trará mudanças sociais, diz ativista.

Vinícius Lisboa - Repórter da Agência Brasil
"Quantas pessoas trans frequentam a sua casa?" Em um vídeo lançado para o Dia da Visibilidade Trans, lembrado hoje (29), alunas e alunos transexuais do curso Prepara Nem, no Rio de Janeiro, fazem essa e outras perguntas provocativas como um convite à reflexão: "Quantas vezes você já defendeu uma travesti vítima de chacota? E quantas vezes você riu?". Após seis meses de aulas que renderam aprovações, o curso agora quer alfabetizar, ensinar idiomas, preparar para concurso público e capacitar os alunos na Linguagem Brasileira de Sinais (Libras). 
Ativista trans Indianara Siqueira é uma das criadoras do Prepara Nem
Ativista trans Indianara Siqueira é uma das fundadoras do Prepara Nem Ricardo Schimidt
Fundadora, a ativista Indianara Siqueira tem a expectativa de que a entrada de transexuais no mundo acadêmico traga mudanças no modo de pensar da sociedade. 
"Quanto mais pessoas trans entrarem para a academia, mais a sociedade vai ter um choque. Porque tudo o que é contado na academia vai entrar em choque com essa vivência com a qual não se tinha contato", diz.
"Isso faz parte da conquista da visibilidade. Para que saibam que existimos", completa.
O curso começou no segundo semestre do ano passado e já registra algumas aprovações. Alunos do Prepara Nem conquistaram duas bolsas de estudo integrais na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). 
As aulas também ajudaram uma das alunas a passar em um concurso público para a Prefeitura de Duque de Caxias. Além das pontuações e posições em listas de aprovados, o objetivo é combater a invisibilidade. As metas para este ano são mais ambiciosas e incluem levar o curso a locais mais distantes do centro da capital fluminense.
Transexual, negra e moradora da zona oeste, a operadora de telemarketing Luiza Mendonça, 20 anos, entrou no projeto como professora de química. Ela cursa farmácia em uma universidade particular e aproveitou a motivação para tentar novamente o vestibular para medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Com mais de 800 pontos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ela chegou perto da nota de corte de 824,74 pontos, a mais alta de todo o país, e está na lista de espera.
Luiza Mendonça
Aos 22 anos, Luiza Mendonça cursa farmácia em uma universidade particular e dá aulas de química no curso preparatório voltado para alunos e alunas transexuaisRicardo Schimidt
"As pessoas têm uma visão de que uma travesti só serve para a prostituição e mais nada, que não vai conseguir trabalho e vai ficar na vulnerabilidade. Mas queremos colocá-las no âmbito acadêmico", diz Luiza, que acredita que a oportunidade de estudar trouxe autoconfiança aos alunos.
"Dá para ver que não ajudou só na questão acadêmica. Muitas meninas, quando entraram, eram tímidas, não falavam direito. Hoje se tornaram ativas, te respondem, questionam".
Saiba Mais

A universitária participa da organização do núcleo zona oeste do curso preparatório e usa o exemplo da própria família como argumento de que a visibilidade da pessoa trans é importante no combate ao preconceito. "[Meus pais] viram que eu estava em uma faculdade, que estava trabalhando e estava com as minhas contas pagas. Sempre tive minhas desavenças, mas em vista do que era antes, mudou".
Quem apresentou Luiza ao Prepara Nem foi Letícia Suet, 22 anos, que conseguiu uma bolsa de 100% para cursar serviço social na PUC-Rio. Ela acredita que sua experiência de vida fará diferença na atuação profissional. "A gente sabe o que é cair em vulnerabilidade. Moro em favela, sempre fui pobre, e muitas pessoas trans vivem dessa forma", diz.

Letícia Suet
Letícia Suet conseguiu uma bolsa integral para estudar serviço social na PUC-Rio Ricardo Schimidt
Luiza conta que terminou o ensino médio em um supletivo depois de ter abandonado a escola por diversos episódios de preconceito. 
"Eu tinha problema com os alunos, com a direção, e não tinha apoio em casa. Tentei voltar algumas vezes, mas não deu. Hoje estou mais tranquila, mais confiante de falar na frente das pessoas".
secretário especial de Direitos Humanos, Rogério Sottili, defende que o trabalho para que essa população tenha mais visibilidade deve começar cedo, ainda na escola.
"Acho que o foco das políticas deve ser o ensino fundamental. Mais da metade dessa população foi expulsa de casa com 13, 14 anos de idade porque a família não aceitou a sua identidade. É uma população muito vulnerável. Quem chega na universidade está tão bem estruturada que fica em primeiro lugar e enfrenta, por si só, todas as adversidades. O importante é a gente preparar as escolas com políticas públicas de direitos humanos", defende.

Alfabetiza Nem. Ao notar dificuldades mais profundas na formação de pessoas trans que deixaram a escola na mesma situação de Letícia, o curso decidiu dar um passo além e atuar na alfabetização. "Quando nos aproximamos da população trans de rua, a maioria tem um nível de alfabetização muito baixo. Isso trouxe essa necessidade de alfabetização", explica Indianara, que também justifica a necessidade de chegar a alunos de outras localidades. "Primeiro, pela distância, para não centralizar tudo no Rio de Janeiro. E depois pela necessidade dessas pessoas, em muitos desses lugares, de serem empoderadas onde moram, onde vivem. Para desentocar essas pessoas e esses locais e abrir o debate".

Além do núcleo zona oeste, que deve ficar na região de Bangu, o Prepara Nem busca alunos e voluntários em Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Nilópolis, Niterói e Complexo da Maré. A expectativa é chegar a 150 alunos neste ano. Para arrecadar fundos e divulgar o trabalho, as ativistas e alunas posaram para o fotógrafo Ricardo Schmidt e, com a ajuda de voluntários, publicaram um calendário. As fotos foram tiradas em um estúdio e algumas delas foram usadas nesta matéria.

Edição: Lílian Beraldo

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Porto do Itaqui - MPF diz que implantação de porto é irregular.

CajueiroG
O Ministério Público Federal no Maranhão (MPF/MA) propôs ação civil pública, com pedido de liminar, contra o Governo do Estado do Maranhão e a WPR São Luis Gestão de Portos e Terminais LTDA para garantir a integridade do meio ambiente e a  promoção dos direitos da comunidade tradicional do Cajueiro, localizada nas proximidades do Distrito Industrial de São Luis, que se vê ameaçada por implantação irregular de empreendimento portuário na área.
As investigações sobre o licenciamento ambiental irregular do empreendimento Terminal Portuário de São Luis foram realizadas a partir de denúncias feitas ao MPF/MA, uma delas realizada pela Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura do Estado do Maranhão (Fetaema). Contatou-se que na localidade da comunidade doCajueiro existe um registro cartorial particular e outro do Estado do Maranhão, que concedeu o título condominial às famílias do Cajueiro em 1998, por meio do Instituto de Colonização e Terras do Maranhão (Iterma).
No entanto, esse fato não foi considerado pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Sema) que, ao realizar a análise da situação, qualificou os moradores como “posseiros”, entendendo que eles deveriam ser reassentados pela empresa, sem prejuízo de indenizações pela “retomada das posses”. Dessa forma, a Sema admitiu apenas a validade do registro particular, ainda que, legalmente, os dois registros sejam considerados válidos.
Segundo o MPF/MA, a licença prévia concedida pela Sema deve ser considerada inválida em decorrência da incerteza da situação dominial da localidade, ainda, pela falta de verificação de existência de condições para abrigar o empreendimento na área, bem como a falta de análise dos impactos ambientais e sociais que ocorreriam com a remoção dos moradores. Para o Ministério Público Federal, a existência de moradias no local do empreendimento, há décadas, com registro real no cartório de imóveis, é uma circunstância a ser avaliada como decisiva para um possível licenciamento. É importante ressaltar também que, a área em questão é rica em manguezais, vegetação que pode ser destruída pela implantação de um grande terminal portuário.
Na ação, o MPF/MA pede que sejam declarados nulos todos os atos administrativos até então praticados em procedimentos de licenciamento ambiental da Sema relativos ao Terminal Portuário de São Luis. Também que, no caso de um novo pedido de licenciamento do Terminal, o Estado do Maranhão exija um outro Estudo de Impacto Ambiental (EIA), com avaliação adequada dos impactos sobre a área de manguezais e  sobre a comunidade doCajueiro, sendo que, o EIA sobre a comunidade deverá ser submetido à audiência pública, com participação da comunidade interessada.
O MPF requer ainda que o Estado do Maranhão não conceda licença a nenhum empreendimento na área onde localiza-se a comunidade do Cajueiro enquanto não for solucionada a situação dominial da área, também, que não realize atos, nem adote medidas que possam representar, direta ou indiretamente, a remoção da comunidade do Cajueiro do território tradicionalmente ocupado.