Com um balanço da falta de democracia na comunicação e nas mídias no país, uma crítica à política de comunicação dos governos petistas, que não conseguiram criar dispositivos legais para interromper o processo de oligopolização da mídia e quebrar o monopólio da Globo e dos grandes conglomerados de comunicação e nem consolidar dispositivos de democratização da comunicação, e um debate sobre os desafios e tarefas da comunicação pública, popular e independente depois do golpe de 2016, foi realizada em São Paulo, em 13 e 14 de abril, a Conferência “Vencer a Batalha da Comunicação”. Organizada pela Secretaria Nacional de Comunicação do Partido dos Trabalhadores, a Conferência reuniu secretários de comunicação, assessores de mandatos parlamentares e jornalistas, blogueiros e ativistas da mídia independente.
A fala de Franklin Martins, ministro-chefe da Secretaria da Comunicação Social no governo Lula, no Ato Político Pela Democracia na Comunicação que encerrou o primeiro dia do evento, marcou o tom dos debates do dia seguinte. Martins fez uma dura crítica à incapacidade de, em treze anos de governo, não se ter construído políticas mais sólidas de democratização da comunicação e de quebra do monopólio dos grandes conglomerados da mídia. De certo modo houve uma aposta pragmática por parte dos governos petistas de que a Globo e etc. estariam com o governo, ou no mínimo não prejudicariam os processos democráticos. O ministro Paulo Bernardo, das Comunicações governo Dilma, chegou a afirmar que não se produz democratização da comunicação mudando as leis, esquecendo experiências históricas em que leis de comunicação e princípios de regulamentação produziram transformações significativas no campo da comunicação em outros países. Franklin Martins havia elaborado o projeto de Regulamentação dos Meios de Comunicação, que buscava mudar a legislação atual, favorece a concentração da produção e difusão da informação e a formação de oligopólios e de monopólios. Mas o projeto foi abandonado pelo ministro Paulo Bernardo, e a inércia deixou o espaço livre para o golpe parlamentar de 2016, que foi também jurídico e fortemente midiático. Alguns acreditam que a opção por não mexer no monopólio da comunicação foi um modo de adiar um golpe anunciado. Duas visões que convergem para uma questão: em 13 anos de governo popular, os oligopólios continuaram crescendo, obtendo mais lucros com o negócio da informação e ganhando mais e mais poder no campo político.
A EBC e o marco regulatório da internet
Mas o campo democrático e popular ganhou alguns pontos na batalha da comunicação nos treze anos de governo Lula e Dilma. Entre eles a criação da Empresa Brasileira de Comunicação e a aprovação e formalização do Marco Civil da Internet, que foi resultado de um amplo processo de mobilização e participação da sociedade civil organizada em diferentes fóruns e que define o acesso igualitário à rede, impedindo o fatiamento a partir da comercialização de pacotes diferenciados, em que planos populares mais baratos restringiriam o acesso.
A criação da Empresa Brasileira de Comunicação foi fruto de um esforço conjunto de unificar emissoras e órgãos públicos de comunicação dispersos em um sistema público de comunicação, buscando também concretizar um princípio expresso na Constituição de 1988, de que a comunicação pública não pode se confundir com emissora do governo. Emissoras dispersas e com dificuldades de se manterem foram reunidas em torno da EBC. A TV, Brasil, em seus quase dez anos de atividade, chegou a se constituir em uma verdadeira alternativa ao lixo midiático veiculado pelas grandes emissoras de rádio e televisão, com programas em sua grande maioria concebidos e produzidos no Brasil, espaço para expressões culturais locais e regionais, periféricas e valorizando a diversidade, um jornalismo de qualidade e uma equipe de comentaristas que colocou em pauta grandes questões nacionais não pautadas pelos canais tradicionais. Tornou-se uma das maiores janelas para a veiculação de produções independentes do país, chegando a compor 20% de sua programação. Durante os processos do golpe de 2016, era uma das poucas emissoras, senão a única, que produzia conteúdos informativos e analíticos com alguma consistência, enquanto a Globo, descaradamente, convocava manifestações contra Dilma.
Um dos primeiros atos de Temer após o golpe de 2016 foi iniciar um acelerado processo de desmontagem da EBC. Em uma primeira Medida Provisória, em setembro de 2016, Temer atingiu a empresa justamente nos dispositivos que garantiam sua independência e autonomia em relação a governos: extinguiu o conselho de curadores e afastou o jornalista Ricardo Mello, diretor-presidente nomeado por quatro anos para o cargo. Medida declarada ilegal pelo STF, obrigando o golpista a voltar atrás e renomeá-lo. Em fevereiro de 2017 o Senado sela o desmonte, aprovando a Medida Provisória de Temer, aniquilando o projeto inicial da EBC e a possibilidade de uma comunicação pública independente no país.
Além de instrumentalizar e aparelhar uma empresa pública de comunicação para servir ao governo, as ações do governo golpista e do congresso que o ampara visam também atender aos interesses dos grandes conglomerados de comunicação, entre eles as Organizações Globo.
A comunicação no mundo neoliberal: produção de mais-valia e objetificação da pessoa
Quando um jovem clica curtindo uma postagem ou faz um comentário, ele pensa que está se divertindo, mas na verdade ele está produzindo mais-valia. “A garotada na rede, está tudo trabalhando, está tudo produzindo mais-valia, capital”. Para a filósofa e professora da USP Marilena Chaui, é essa a relação que define hoje a mídia digital e fundamentalmente a internet.
A filósofa, que abriu os trabalhos do segundo dia da Conferência com uma densa fala sobre democracia, neoliberalismo e comunicação, considera que democracia é o “trabalho sócio-político do dissenso” e “ultrapassa o projeto liberal”. O mandato (e o poder) não pertence àquele que foi eleito, mas a quem o elegeu. A democracia seria assim o único regime político em que governante e poder não são idênticos.
Mas por que seria tão difícil a democracia no Brasil? A própria filósofa responde: por que o Brasil é estruturalmente antidemocrático e violento. Mas não se deve confundir violência com criminalidade, como faz a mídia. “Violência é tratar um ser humano, dotado de razão, vontade, sentimentos, como se fosse uma coisa.” É fazê-lo passar da condição de sujeito à condição de coisa. Em uma sociedade em que existe uma profunda carência das camadas populares e um exacerbado privilégio das camadas dominantes, é muito difícil a instituição de direitos.
A filósofa trouxe alguns fundamentos teóricos e conceituais para se compreender o contexto contemporâneo em que se discute democratização da comunicação: um contexto de enxugamento do espaço público e alargamento do privado, a burocratização da noção de política, de ascensão da ideologia meritocrática em detrimento da ideia de direito, e consequentemente a instauração do ódio como a dimensão subjetiva disso tudo: a violência e o ódio a todos esses “outros” que podem ameaçar o que se conseguiu “por mérito”: o migrante, os que questionam e falam em direitos.
Para Chaui, outra dimensão introduzida pelo neoliberalismo, consequência da falta de democracia na informação, é, como escreveu Christopher Lasch, a confusão entre o real e o crível. A “credibilidade” não seria mais dada pelo rigor dos dados, dos fatos apurados e checados, mas por quem fala, pela “personalidade confiável”, para citar uma fórmula de George Orwell. O que se tem a partir daí seria um jornalismo não mais informativo mas assertivo, uma confusão entre informação e mensagem, entretenimento e política.
A questão do controle das empresas de comunicação não seria mais esta ou aquela família. São setores do capital que controlam a mídia, bancos, donos de satélites… E no caso das tecnologias digitais, soma-se a isso a velocidade, a concentração da difusão e das informações. Ela pergunta: “Quem detém o controle dessa massa cósmica de informação?” Quem tem o poder sobre essa massa de informação do planeta? Chaui traz um exemplo comum ao jornalismo diário: a cobertura de uma tragédia, que atinge pessoas, as desaloja, provoca a morte de familiares e próximos. A pergunta do repórter é “Como você se sente?”. Toda possibilidade de um pensamento por parte daquele que viveu a experiência é descartada. Eu diria: outro processo de dessubjetivação, ou coisificação diria a filósofa, em que os sujeitos sofrem a violência simbólica e epistêmica de serem destituídos da possibilidade de pensar, refletir, criticar.
Com essa reflexão, que traduzi de modo rápido e um tanto esquemático acima, Marilena Chaui conclui mencionando as contradições com que a esquerda precisa se deparar em relação às redes sociais. Se parece haver um consenso de que elas são um instrumento impressionante de informação alternativa, de cobertura ao vivo, apenas com um celular, de eventos, mobilizações, movimentos culturais da periferia, ou seja de tudo que é invisível para a grande mídia, por outro lado há que se atentar para o modo como operam e são produzidas as redes sociais.
Ela exemplifica: se em outros momentos se controlava todo o processo produtivo da informação alternativa, da produção do conteúdo à sua impressão, existiria hoje uma enorme alienação em relação ao modo de produção da informação digital. Existe um loteamento do campo eletromagnético e do ciberespaço em que o usuário (inclusive a esquerda, os movimentos sociais, ativistas, etc,) são mercadoria. Os usuários não têm nenhum domínio do objeto tecnológico de que se utilizam. Lidar com essas contradições é um dos grandes desafios de quem busca construir espaços alternativos e independentes de comunicação, e de produção e difusão de informações.
Os desafios da mídia democrática em tempos de golpe
O desmantelamento na prática do projeto de um sistema público de comunicação, representado pela EBC, que, apesar das resistências internas e externas vêm se tornando cada vez mais um espaço governamental e cada vez menos público, coloca novos desafios para o campo da comunicação democrática. Esse foi o eixo das oficinas temáticas que aconteceram na tarde do último dia da Conferência.
O primeiro dos desafios[1] é que a mídia independente é feita de muitos pequenos, as centenas de sites, páginas, blogues …, enfrentando poucos gigantes, os oligopólios da comunicação. No entanto, em alguns momentos pontuais as pesquisas de mancha de audiência da mídia independente mostraram uma aproximação em relação à mancha dos conglomerados. Com alguns sites e projetos como ponta de lança, entre eles a Mídia Ninja, com o seu “jornalismo em tempo real”. Ou a TVT, TV dos Trabalhadores, que capitaneou a cobertura dos atos e da vigília em São Bernardo, antes de Lula ser preso. A ponto de a mídia corporativa se alimentar das imagens produzidas pela TVT em seu noticiário. A questão colocada pelos participantes da Conferência foi como transformar em rotina esses grandes momentos de cobertura em que a mídia pig é batida em audiência, visualizações, audições etc. Se funciona de modo pontual, por que não funcionaria de modo mais sistemático?
O segundo desafio é o de como unificar essas forças dispersas em centenas de milhares de sites, blogues, páginas, em diferentes canais (face, twitter, instagram, youtube…), otimizando tempo e energia. Muitas vezes se tem, em relação a um evento, dezenas de pessoas fazendo a mesma reportagem, tirando as mesmas fotos, escrevendo textos parecidos, para saírem em diferentes páginas. Se por um lado a diversidade é super bem-vinda, por outro lado, organizar tudo isso ajudaria a potencializar tempo e energia, e ampliaria as possibilidades de cobertura da informação.
Um terceiro desafio é mais conceitual (um entre vários desafios conceituais): a mídia alternativa e independente se alimenta em grande parte de material produzido no calor dos acontecimentos, pelos próprios participantes, na maior parte das vezes usando seus celulares e seu próprio testemunho. Que perspectivas esse fenômeno traz para a democratização da comunicação? Que novas configurações entre política e comunicação ele instaura? Há várias pesquisadoras e pesquisadores pensando essa questão pelo mundo, mas seria interessante elaborar isso em relação ao Brasil do pós-golpe, em que parece haver uma verdadeira explosão de disputas narrativas, de interpretação e de informação.
Por fim, se a EBC está temporariamente desativada em relação aos objetivos que a criaram, de democratização da informação e construção de um sistema público de comunicação, nada impede que esses princípios sejam realizados no campo da oposição e da esquerda. Para dar um exemplo, com a desfiguração do Fórum Nacional de Educação (FNE) pelo governo golpista, educadores, estudantes, ativistas preocupados com a defesa da educação pública, gratuita, laica e de qualidade decidiram se retirar coletivamente do FNE e criaram a FNPE (Frente Nacional Popular de Educação) e estão neste momento no processo preparatório da CONAPE (Conferência Nacional Popular de Educação). A CONAPE tem como eixos a defesa da educação pública e transformadora e a luta pela democracia.
Essa experiência pode ajudar a pensar uma alternativa ao esvaziamento da EBC e à dispersão que ainda vigora no campo da mídia independente, apesar de várias iniciativas no sentido inverso. A proposta de uma Rede Brasileira de Comunicação Popular (ou: independente, alternativa, a discutir) pode ser um caminho.
Ela não substituirá a EBC, que se propunha a ser uma rede de comunicação pública. Esse projeto permanece e para ser retomado é preciso o retorno da democracia ao país.
[1] Estou mencionando apenas alguns desses temas, há vários outros que não há como abordar neste curto espaço: a questão das notícias falsas (as fake news), das concessões de canais, das rádios comunitárias, da imprensa sindical, do financiamento da mídia independente, entre outros.
— Sônia Weidner Maluf é antropóloga, jornalista, professora titular da UFSC e pesquisadora do CNPq.