Escrito por Irlan Simões.
Quarta, 28 de Novembro de 2012.
Em
12 de setembro último, o primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron, fez
um pedido de desculpas histórico.
Dirigindo-se às famílias das 96 pessoas
massacradas no Estádio de Hillsborough, em abril de 1989, numa partida de
futebol entre o Liverpool e o Nottingham Forest, reconheceu que os mortos
haviam sido vítimas de “dupla injustiça”.
Além de perderem a vida, foram
acusados, por 23 anos, de pertencerem ao grupo de torcedores do Liverpool que
causou a tragédia. Foi uma manipulação grosseira que durou mais de duas
décadas, admitiu Cameron, em discurso ao Parlamento e apoiado no relatório
final de um painel independente.
No
final dos anos 1980, uma pequena parcela dos frequentadores ingleses de
estádios – chamados de hooligans – havia, de fato, desenvolvido uma
cultura de prazer pelo confronto e violência. Mas a torcida do Liverpool não
teve responsabilidade alguma pela chamada Tragédia de Hillsborough. Ela foi
provocada pelas condições precárias do estádio (algo comum na época) e por
atitudes de clara negligência da polícia.
Decisões
esdrúxulas no controle do fluxo de torcedores ao estádio superlotado
favoreceram esmagamentos, pisoteamentos e, ao final, queda do muro que separava
as arquibancadas do campo.
Não se prestou socorro. Apenas 14 dos 96 mortos
(houve também 766 feridos) foram atendidos em hospital. Só uma das 44
ambulâncias presentes às imediações de Hillsborough foi autorizada a socorrer
as vítimas.
O
reconhecimento da verdade deveria impulsionar um passo ainda mais importante. É
preciso rever todo o conjunto de políticas e normas que, a partir da tragédia,
transformaram a face futebol mundial, convertendo-o num esporte cada vez mais
elitizado, afastado de suas raízes sociais e culturais, reduzido à dimensão de
produto mercantil e de marketing.
Hillsborough e a fraude produzida a seguir
foram o marco decisivo desta mudança — que está sendo adotada no Brasil no
momento em que você lê este artigo, tendo como pretexto da Copa do Mundo de
2014.
Como
Thatcher manipulou a tragédia
A
ponte entre o que ocorreu no estádio e a elitização do futebol foi o chamado Relatório
Taylor. Chefiado então pela primeira-ministra Margareth Thatcher, um dos
personagens-ícones do neoliberalismo, o governo britânico constituiu uma
comissão, chefiada por Lorde Taylor de Gosforth, para investigar as causas da
tragédia e sugerir providências.
O
trabalho de apuração foi manipulado do início ao fim, sabe-se agora
oficialmente. Dos 164 relatórios produzidos por policiais presentes ao estádio,
116 foram alterados, para remover “comentários desfavoráveis” à atuação das
forças “da ordem”. A omissão das informações foi proposital, segundo admitiu
Cameron ao Parlamento.
A falsificação teve objetivos claros: responsabilizar
pela tragédia a torcida do Liverpool; demonizá-la; abrir caminho para um conjunto
radical de transformações que já haviam sido planejadas, mas não eram até então
viáveis. Elas incidiram nos estádios, na forma de financiamento dos clubes e na
relação entre o jogo e o mundo do marketing. Iniciadas na Inglaterra,
repercutiram rapidamente em todo o mundo.
Thatcher
aplicou, no futebol, a mesma “mão-de-ferro” com que destruía leis trabalhistas
e atacava os sindicatos. Estourou as firms, como eram conhecidos os
agrupamentos hooligans, torcedores que já vinham causando problema
dentro e fora dos estádios pelo seu prazer pelo confronto físico. Quatro anos
antes de Hlilsborough, em partida entre Liverpool e Juventus pela Copa dos
Campeões da Europa, 39 torcedores haviam morrido pisoteados e esmagados durante
uma briga generalizada, conhecida como Tragédia de Heysel (na Bélgica).
Em
paralelo, avançava outro processo: a poderosa FIFA iniciara uma reforma no
futebol mundial. O avanço das tecnologias de comunicação transformaria o
esporte num dos principais “produtos” televisivos do planeta. Foi um movimento
marcado pela entrada maciça de atores econômicos que hoje controlam o futebol.
O comércio de jogadores não era mais o único espaço de trocas comerciais. O
esporte passou a ser um grande conglomerado internacional que envolvia
anunciantes, patrocinadores, investidores, atletas-estrelas e, se dependesse do
projeto ao qual aderiu Margareth Thatcher, uma competição esportiva de grandes
empresas. Estava sendo gestado o futebol-negócio dos dias de hoje.
Para
tal projeto, a Tragédia de Hillsborough veio no momento ideal. Desde que
devidamente arquitetadas, as argumentações necessárias para a “reforma” estavam
dadas: era preciso dar, definitivamente, um novo rumo ao futebol,
“civilizá-lo”.
Publicado em janeiro de 1990, menos de um ano após o incidente,
o relatório final da comissão chefiada por Lord Taylor indicou o caminho.
Embora
focado em estabelecer diretrizes para um projeto de segurança, o documento
propôs uma série de medidas que traziam novas normas de estruturação dos
estádios e do próprio futebol inglês. A capacidade de público foi reduzida.
Estabeleceu-se que todos os torcedores deveriam permanecer sentados. Os clubes
passaram a ser responsabilizados pelos atos de seus apoiadores – o que gerou
uma leva de mudanças e de uma ideologização da suposta “modernização e
profissionalização das estruturas”.
O
movimento de reforma dos estádios, e de restrições aos torcedores briguentos,
já estava em curso. A crise que se estendeu após o evento em Hillsborough
serviu de catalisador para que o processo avançasse. Porém, os clubes e suas
torcidas não tinham estrutura necessária para isso.
Para
enfrentar rapidamente o novo desafio, tornaram-se empresas de capital aberto e
passaram a ter proprietários. Assim, conseguiram obter a estrutura necessária
para desenvolver os estádios que seriam os protótipos das atuais “Arenas
Multiuso”: complexos desportivos e verdadeiras zonas de consumo.
Surgiu
um efeito colateral imediato: o futebol inglês expulsou, junto com os
“violentos”, os torcedores mais pobres, que não tinham a capacidade financeira
de arcar com ingressos cada vez mais caros em estádios cada vez menores e mais
restritivos.
O
projeto neoliberal para o futebol consolidou-se, por fim, com a criação da
Premier League em 1992 (a liga de primeira divisão do esporte na Inglaterra),
com a definição de novas regras de comercialização dos direitos televisivos,
publicidade, patrocínios e jogadores. No fim da década de 2000, todos os clubes
desta liga — uma das maiores do futebol profissional no mundo — já pertenciam a
multimilionários e bilionários árabes, russos, chineses ou estadunidenses.
O
futebol brasileiro também revisará o relatório?
Ainda
que o esforço por acabar com a violência que tomava os estádios ingleses fosse
elogiável, o Relatório Taylor falhou – por miopia ou por má vontade política –
em reconhecer as verdadeiras causas da Tragédia de Hillsborough. As péssimas
condições do estádio eram consequência dos interesses que cercaram o futebol durante
as décadas de sua massificação. Naqueles tempos, importavam quantidades.
Convinha
aos dirigentes ver estádios superlotados, para ampliar as rendas dos clubes e
abarrotar seus próprios bolsos. Pouco importavam as condições de conforto ou
segurança dos torcedores.
Na
nova fase, consolidada a partir do Relatório Taylor, o modelo de negócio mudou.
Não interessava encher as arenas com torcedores que mal podiam pagar ingressos.
O novo público precisava ter não apenas um “padrão de comportamento”, mas um
“padrão de consumo” que compensasse uma estrutura de tal porte.
A
Tragédia de Hillsborough dos tempos de hoje não é mais a superlotação, mas o
esvaziamento dos estádios, de onde vão sendo expulsos os antigos torcedores
tradicionais. O futebol inglês, apesar de ainda ter uma das grandes médias de
público do futebol mundial, é o mais caro e menos popular de todas as grandes
ligas. O padrão de torcedor está totalmente modificado.
No
Brasil, vemos a proliferação das “arenas” com consequente aumento do valor dos
ingressos. O resultado é o esvaziamento do campeonato brasileiro – que tem a
pior média de público dentre as dez melhores ligas.
Até
o início dos anos 2010, muitos apontaram o exemplo inglês para referendar essa
ideologização de um futebol “moderno, profissional e empreendedor”. O próprio
Estatuto do Torcedor fazia menção ao Relatório Taylor e ao modelo britânico de
“gestão de crises”. Restringiu de múltiplas formas as torcidas organizadas e
procurou moldar o comportamento do torcedor comum dentro dos estádios.
A
longa luta dos torcedores do Liverpool
A
revisão do ocorrido em Hillsborough, e das manipulações que se seguiram, foi
possível apenas devido à mobilização da torcida do Liverpool. Ela contestou, ao
longo de mais de duas décadas, a versão construída pelo Relatório Taylor.
Enfrentou, além de Margareth Thatcher, o sensacionalismo dos tabloides
britânicos. O The Sun chegou a publicar “depoimentos” de policiais assegurando
não ter ajudado as vítimas porque torcedores, bêbados, não permitiam, urinando
em quem tentava socorrê-los.
Aos
poucos, a resistência restabeleceu a verdade. Um abaixo-assinado com 140 mil
adesões exigiu nova investigação. O painel independente, no qual o
primeiro-ministro Cameron agora se apóia, foi formado graças à mobilização.
O
presidente das investigações, James Jones, reconheceu que o inquérito inicial
foi comprometido por “árduas tentativas de colocar a culpa nos torcedores”.
Foram
necessários 23 anos de angústia e de mentiras para que as famílias das vítimas
de Hillsborough pudessem provar ao mundo que se tratou de negligência e de
irresponsabilidade das autoridades inglesas.
Foram necessários 23 anos para que
elas pudessem provar que seus filhos, e os filhos de tantos outros torcedores criminalizados
na Inglaterra, não eram os culpados por aquela tragédia.
Foram
necessários 23 anos para que os torcedores expulsos dos estádios – por livre e
espontânea pressão do dinheiro, como prega o pensamento neoliberal – pudessem
provar que foram injustamente culpados para que um plano premeditado pudesse
ser aplicado sem direito de resposta.
Resta
saber se, no Brasil, prevalecerão as políticas preconizadas pelo Relatório
Taylor, fruto de notória manipulação.
Resta saber se prevalecerão a “vontade e a
liberdade dos agentes econômicos” ou o bom senso, a democracia e o direito do
acesso à cultura e ao futebol pela população empobrecida, já tão excluída nos
tempos neoliberais.
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