Jornal o Globo destaca que doentes mentais estão presos ilegalmente em São Luís. Ao menos 800 detentos com alguma deficiência deveriam estar em clínicas ou hospitais de custódia. Retratos da vida insana no cárcere : ‘terapia’ tem choque, mas não remédio.
Esquecidos. Em São Luís (MA), doentes mentais são mantidos presos
sem tratamentoAndré Coelho
SÃO LUÍS -
Num buraco ao lado de uma criação de porcos, da tubulação de esgoto e
do resto da comida servida na Casa de Detenção (Cadet), Cola na Cola
passa as noites e cumpre sua pena.
José Antônio dos Santos não admite
mais ser chamado pelo nome, refuta pai e mãe, veste-se com roupas
femininas e se considera mulher. Só atende pela alcunha Cola na Cola,
uma expressão que ninguém sabe explicar de onde surgiu.
Nos últimos dois anos, ele não
aderiu a qualquer tratamento psiquiátrico, não tomou uma única medicação
nem esteve numa consulta médica. O buraco onde mora está na entrada do
presídio, na parte de dentro, onde ficam os porcos, as galinhas e o
lixo.
No pátio de uma
pequena igreja improvisada numa das celas da Cadet, o maior presídio de
regime fechado de São Luís, um jovem de 24 anos estende um colchão para
passar as noites. Paulo Ricardo Machado tem os olhos esbugalhados,
frases aceleradas, uma postura impassível.
Há dois meses, foi
diagnosticado com esquizofrenia paranoide e dependência ao crack. A
loucura de Paulo Ricardo explodiu na Cadet depois que um preso
introduziu um cabo de vassoura no ânus do jovem. Para conter os surtos,
técnicos de saúde da unidade pediram a aplicação de oito sessões de
eletrochoque no rapaz. Eles dizem ter sido atendidos.
Num cubículo de
cela, sem nada, Francisco Carvalhal, 50 anos, tenta domar a
agressividade.
Ele já foi absolvido uma vez pela Justiça, em razão de a
esquizofrenia paranoide ter impedido a compreensão de um ato ilícito.
O
juiz determinou que Francisco fosse internado no Hospital Psiquiátrico
Nina Rodrigues, o único existente na rede pública em São Luís, para o
cumprimento de uma medida de segurança. O hospital rejeitou o paciente.
Dias depois, sem medicação e em surto, ele matou a mãe. Para escapar de
um linchamento, foi levado para o Centro de Detenção Provisória (CDP)
Olho D'Água, onde permanece há dois meses.
800 absolvidos ainda detidos
Na teoria, a existência do transtorno mental e a consequente aplicação
de uma medida de segurança a partir da absolvição pelo juiz impedem a
permanência de loucos infratores nos presídios.
Levantamento
inédito do GLOBO revela a extensão do universo de loucos nos presídios
brasileiros — um grupo cuja existência parte da sociedade brasileira
prefere ignorar. Pelo menos 800 pessoas absolvidas pela Justiça em razão
de transtornos mentais e em cumprimento de medida de segurança estão
detidas em presídios e cadeias públicas país afora.
A medida tem um
prazo mínimo de um a três anos, é determinada pelo juiz responsável pelo
processo — logo após a absolvição do acusado — e deve ser cumprida em
hospitais de custódia, clínicas ou ambulatórios.
Essas pessoas são
consideradas inimputáveis ou semi-imputáveis, uma vez que a manifestação
dos problemas psiquiátricos impediu a compreensão dos crimes, e
deveriam estar em tratamento médico. Na prática, cumprem pena no
cárcere.
A quantidade pode
ser até três vezes maior: outros 1,7 mil brasileiros acusados de
diferentes crimes já receberam indicação da Justiça de que podem ter
transtornos mentais e aguardam, além de um laudo psiquiátrico,
tratamento médico dentro de presídios, em casa ou nas ruas. Em alguns
estados, como São Paulo, a espera numa fila dura mais de um ano. Em
outros, o laudo nunca é elaborado.
O levantamento do
GLOBO foi feito junto às secretarias de administração penitenciária,
defensorias públicas e varas de execução penal nos estados, além de
consultas a fontes nos Ministérios da Saúde e da Justiça.
O Sistema
Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen), alimentado pelo
Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça,
registra a existência de 3,9 mil pessoas em cumprimento de medida de
segurança, seja em internação ou em tratamento ambulatorial. Os doentes
mentais nos presídios identificados pelo jornal não entram na conta.
Os números oficiais
tratam dos 26 manicômios judiciários e alas de tratamento psiquiátrico —
anexadas a presídios — ainda em funcionamento em 20 unidades da
federação. Cabe a esses hospitais de custódia receber os loucos
infratores submetidos a medidas de segurança de internação.
O Infopen
ignora as pessoas que cumprem a medida em prisões e até mesmo os
inscritos em dois programas em Goiás e Minas Gerais que pregam a
desinternação, como preconiza a Lei Antimanicomial de 2001. Somados os
três universos — manicômios, presídios e programas de desinternação —, a
quantidade de loucos infratores é de 8,1 mil, mais do que o dobro do
que consta no Infopen.
— A situação mais
grave envolvendo medidas de segurança é a dos detidos em presídios. A
responsabilidade pela integridade física do preso é do Executivo e, pelo
andamento do processo, da Justiça. A Lei de Tortura prevê
responsabilização por ação e omissão.
Não há qualquer justificativa para
as prisões — afirma o juiz Luciano Losekann, auxiliar da presidência do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e coordenador do Departamento de
Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário.
Para a produção de
uma série de reportagens sobre o assunto, O GLOBO esteve em sete
presídios, uma ala de tratamento psiquiátrico e um manicômio judiciário
em São Luís, Teresina, Goiânia e Brasília. Nas três primeiras cidades, a
equipe conseguiu entrar nas unidades prisionais na companhia de juízes e
de um promotor de Justiça. Em Brasília, uma autorização judicial
permitiu ter acesso às prisões.
A reportagem
flagrou uma realidade de uso contumaz do crack, hipermedicação e
inexistência de prontuários em Brasília; a existência de uma ala
específica para presos com transtornos mentais num presídio de regime
fechado em Goiânia.
Além de pessoas em cumprimento de medida de
segurança misturadas com detentos comuns; e doentes mentais nos mesmos
espaços de pacientes com hanseníase e aids no manicômio em Teresina.
Em
São Luís, pessoas com transtornos mentais estão presas sem qualquer
perspectiva de decretação da medida de segurança. Não há laudos, exames
ou psiquiatra: a única que atendia no complexo prisional deixou de ir ao
trabalho porque está sem pagamento desde dezembro. Um rol de
irregularidades que combinam com o “sistema medieval” descrito pelo
ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, no final do ano passado.
Segurança não garante tratamento
Pelo menos 25
pessoas cumprem medida de segurança nos presídios em São Luís. Não é o
caso de Cola na Cola, o detento que vive num buraco na Cadet há três
anos. Condenado a 19 anos de prisão pela suposta prática de dois
estupros, é a terceira vez que ele passa pelo presídio. Mesmo com um
evidente quadro de loucura, nunca houve um exame de insanidade mental.
A medida de
segurança não garante tratamento psiquiátrico. Francisco Carvalhal,
absolvido num processo por homicídio em razão da esquizofrenia, deveria
permanecer internado “pelo tempo necessário à sua recuperação”, como
decidiu a Justiça em São Luís. O Hospital Nina Rodrigues deu alta a ele
mesmo com a “falta de clareza” sobre a possibilidade de convívio
imediato. No mesmo mês, Francisco matou a mãe. Ela relatava desde 2001
ameaças e pedia a internação do filho.
Após a reportagem
do GLOBO flagrar as três situações no Maranhão, a Defensoria Pública
pediu aplicação de medida de segurança a Cola na Cola e a Paulo Ricardo,
e o juiz Douglas de Melo Martins decidiu reencaminhar Francisco ao
Hospital Nina Rodrigues. A Secretaria da Administração Penitenciária do
estado não respondeu aos questionamentos da reportagem.
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