Por Elton Alisson.
Agência FAPESP – Na região do alto e do médio Rio Negro, no
Amazonas, existem mais de 100 variedades de mandioca, cultivadas há
gerações por mulheres das comunidades indígenas, que costumam fazer e
compartilhar experiências de plantio, chegando a experimentar dezenas de
variedades em seus pequenos roçados ao mesmo tempo.
Exemplo de conservação da agrobiodiversidade por populações
tradicionais, o sistema agrícola do Rio Negro foi registrado pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2010
como patrimônio imaterial do Brasil.
A partir da constatação de que essas práticas culturais geram uma
diversidade de grande importância para a segurança alimentar,
elaborou-se um projeto-piloto de colaboração entre a Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e as organizações indígenas do médio e
alto Rio Negro.
O projeto integrará uma iniciativa criada pelo Ministério da Ciência,
Tecnologia e Inovação (MCTI) por meio do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com o objetivo de
chegar a um programa que estimule a colaboração entre cientistas e
detentores de conhecimentos tradicionais e locais.
A iniciativa foi anunciada por Maria Manuela Ligeti Carneiro da
Cunha, professora emérita do Departamento de Antropologia da
Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, e professora aposentada da
Universidade de São Paulo (USP), na abertura da Reunião Regional da
América Latina e Caribe da Plataforma Intergovernamental sobre
Biodiversidade e Serviços de Ecossistemas (IPBES, na sigla em inglês),
ocorrida no dia 11 de julho na sede da FAPESP, em São Paulo.
“O projeto-piloto será um bom exemplo de como é possível a
colaboração entre a ciência e os conhecimentos tradicionais e locais,
capazes de dar grandes contribuições para a conservação da diversidade
genética de plantas – um problema extremamente importante”, disse
Carneiro da Cunha, coordenadora do projeto.
“A conservação in situ de variedades de plantas, por
excelência, pode e deve ser feita pelas populações tradicionais. O
Brasil, ao promulgar o tratado da FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura] sobre recursos fitogenéticos, se obrigou a estimular essa opção”, afirmou.
Carneiro da Cunha ressalvou que, diferentemente do que costuma se
entender, os conhecimentos tradicionais não são um “tesouro”. Não são
apenas dados que devem ser armazenados e disponibilizados para uso
quando se desejar, como foi feito com a medicina ayurvédica, na Índia.
De acordo com a antropóloga, a sabedoria tradicional é um processo vivo e
em andamento, composto por formas de conhecer a natureza, além de
métodos, modelos e “protocolos de pesquisa” que continuamente geram
novos conhecimentos.
IPCC da biodiversidade - Criado oficialmente em abril de 2012, após quase dez anos de
negociações internacionais, o IPBES tem por objetivo organizar o
conhecimento sobre a biodiversidade no planeta para subsidiar decisões
políticas em âmbito mundial, a exemplo do trabalho realizado nos últimos
25 anos pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC,
na sigla em inglês) em relação ao clima do planeta.
Para isso, o organismo intergovernamental independente realizará uma
série de reuniões com pesquisadores da América Latina e Caribe, África,
Ásia e Europa nos próximos dois meses, produzindo diagnósticos regionais
que comporão um relatório sobre a biodiversidade do planeta.
Os documentos conterão as particularidades dos países de cada região e
deverão levar em conta, além do conhecimento científico, a contribuição
do conhecimento acumulado durante séculos pelas populações tradicionais
e povos indígenas dessas regiões para auxiliar nas ações de conservação
de biodiversidade.
“Uma das ações mais importantes do IPBES deverá ser o envolvimento de
populações locais e indígenas desde o início do programa, chamando-as
para participar do planejamento dos estudos, da identificação de temas
de interesse comuns a serem estudados e do compartilhamento dos
resultados”, disse Carneiro da Cunha.
“O IPCC, que iniciou suas atividades em 1988, só começou a pedir a
contribuição do conhecimento dos povos tradicionais e indígenas para o
desenvolvimento de ações para diminuir os impactos das mudanças
climáticas globais depois da publicação de seu quarto relatório, em
2007”, contou.
Importância do conhecimento tradicional - De acordo com Carneiro da Cunha, os povos tradicionais e indígenas
são muito bem informados sobre o clima e a diversidade biológica locais –
e, por isso, podem ajudar os cientistas a compreender melhor as
mudanças climáticas e o problema da perda da biodiversidade.
Esses povos costumam habitar áreas mais vulneráveis a mudanças
climáticas e ambientais e são muito dependentes dos recursos naturais
encontrados nessas regiões. Acompanham com minúcia cada detalhe que
constitui e afeta diretamente sua vida e são capazes de perceber com
maior acurácia mudanças no clima, na produtividade agrícola ou na
diminuição de número de espécies de plantas e animais, por exemplo,
apontou a antropóloga.
“Esse conhecimento minucioso é de fundamental importância. Até porque
uma das limitações que esses painéis como o IPCC e, agora, o IPBES
enfrentam é identificar problemas e soluções para lidar com as mudanças
climáticas globais em nível local. Isso é algo que só quem mora há
muitas gerações nessas regiões é capaz de perceber”, disse.
Segundo dados apresentados por Carneiro da Cunha e por Zakri Abdul
Hamid, presidente do IBPES na abertura da reunião na FAPESP, há
aproximadamente 30 mil espécies de plantas cultivadas no mundo, mas
apenas 30 culturas são responsáveis por fornecer 95% dos alimentos
consumidos pelos seres humanos; arroz, trigo, milho, milheto e sorgo
respondem por 60%.
Isso porque, com a chamada “Revolução Verde”, ocorrida logo depois da
Segunda Guerra Mundial, houve uma seleção das variedades mais
produtivas e geneticamente uniformes, em detrimento de plantas mais
adaptadas às especificidades de diferentes regiões do mundo. Diferenças
de solo e clima foram corrigidas por insumos e defensivos agrícolas. Com
isso, se espalhou uma grande homogeneidade de cultivares no mundo –
levando à perda de muitas variedades locais.
“Houve um processo de erosão da diversidade genética das plantas
cultivadas no mundo. Isso representa um enorme risco para a segurança
alimentar porque as plantas são vulneráveis a ataques de pragas
agrícolas, por exemplo, e cada uma das variedades locais de cultivares
perdidas tinha desenvolvido defesas especiais para o tipo de ambiente em
que eram cultivadas”, contou Carneiro da Cunha.
Um dos exemplos mais célebres dos impactos causados pela perda de
diversidade agrícola, segundo a pesquisadora, foi a fome na Irlanda, que
matou 1 milhão de pessoas no século XIX e causou o êxodo de milhares de
irlandeses para os Estados Unidos.
Apenas duas das mais de mil variedades de batatas existentes na
América do Sul haviam sido levadas para a Irlanda, no século XVI. Uma
praga agrícola acabou com as plantações, levando à fome, uma vez que a
batata já era o alimento básico na Irlanda e em outros países da Europa.
A partir daí, para evitar a ocorrência de problemas do mesmo tipo,
vários países criaram bancos de germoplasma (unidades de conservação de
material genético de plantas de uso imediato ou com potencial uso
futuro). A medida por si só, no entanto, não basta, uma vez que as
plantas coevoluem com os ambientes, que também mudam ao longo dos anos.
Assim, é necessário complementar os bancos de germoplasma com ações de
conservação in situ, ressaltou Carneiro da Cunha.
“É importante que se entenda que o conhecimento tradicional não é
algo que simplesmente se transmitiu de geração para geração. Ele é vivo e
os povos tradicionais e indígenas continuam a produzir novos
conhecimentos”, ressaltou.
Entraves para aproximação - De acordo com a pesquisadora, apesar da importância da aproximação da
ciência dos conhecimentos tradicionais e locais, o assunto só começou a
ganhar relevância a partir da Convenção da Biodiversidade Biológica
(CDB), estabelecida em 1992, durante a ECO-92.
A regulamentação do acesso ao conhecimento tradicional, previsto no
artigo 8j da CDB, no entanto, ainda é um problema praticamente
universal, afirmou a pesquisadora. “Peru e Filipinas já têm suas
legislações. Mas ainda são poucos os países que editaram suas leis”,
disse.
O Brasil ainda regula o acesso a recursos genéticos e aos
conhecimentos tradicionais associados por meio de uma medida provisória e
não se chegou ainda a um consenso para uma legislação nacional. “Não se
pode ficar somente nessa atitude defensiva e acusar todo mundo de
biopirataria, nessa ‘bioparanoia’ no país, que é um grande impedimento
que teremos de superar”, avaliou.
É preciso estabelecer relações de confiança, afirmou a antropóloga,
algo que só se consegue ao longo dos anos. Uma das formas ideais de se
fazer isso, segundo ela, é quando a própria comunidade tradicional tem
um problema para o qual está buscando solução e que também interessa aos
cientistas.
Um exemplo disso ocorreu recentemente no âmbito do Conselho Ártico –
organização intergovernamental que toma decisões estratégicas sobre o
Polo Norte, reunindo oito países e 16 populações tradicionais, em sua
maioria, pastores de renas.
Em parceria com as comunidades tradicionais transumantes (que
deslocam periodicamente seus rebanhos de renas para regiões no Ártico,
onde encontram melhores condições durante partes do ano), um grupo de
pesquisadores dos países nórdicos, além da Rússia, Canadá e Estados
Unidos, estudou os impactos das mudanças climáticas nos ecossistemas, na
economia e na sociedade da região.
Feito em colaboração com a Agência Espacial Norte-Americana (Nasa, na
sigla em inglês) e com diversas universidades e instituições de
pesquisas, o estudo resultou em um relatório decisivo, intitulado Informe de Resiliência do Ártico (ARR, na sigla em inglês), divulgado em 2004.
Avaliação é da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, que participará de desenvolvimento de programa com o objetivo de estimular a aproximação entre a ciência e os conhecimentos tradicionais e locais (foto:Edu Cesar) | Link desta mataria: http://agencia.fapesp.br/17584 |
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