Rede Voltaire. Moscou –
Rússia. 28 de dezembro de 2015.
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Foto - Federação Russa. |
Como poderia a Rússia, em
apenas 20 anos, sem guerras ou outras perturbações, erguer-se de uma posição de
meia-colônia a uma reconhecida posição de líder mundial, de igual entre as mais
altas?
"Estrategistas"
abrangentes [do inglês ‘kitchen ‘strategists’’; uma alusão à expressão
‘everything, but the kitchen sink’: ‘tudo, mas a pia da cozinha’; tudo o que
pode ser concebido de uma dada situação (dicionário Collins)], que acreditam
sinceramente que um maciço ataque nuclear é a solução universal para qualquer
problema internacional (ou mesmo um confronto bem quente, perto de confronto
militar), estão insatisfeitos com a posição moderada da liderança russa na
crise com a Turquia. No entanto, eles consideram insuficiente até mesmo a
participação direta do exército russo no conflito sírio. Eles também estão
insatisfeitos com as atividades de Moscou na frente ucraniana.
Mas, por alguma razão...
ninguém faz uma pergunta simples: Como aconteceu que, de repente, a Rússia
começou não só a se levantar ativamente frente ao poder hegemônico do mundo,
mas a ganhar com sucesso contra ele em todas as frentes?
Por
que agora.
No final da década de
1990, a Rússia era um estado que econômica e financeiramente estava a nível de
Terceiro Mundo. Uma rebelião anti-oligarcas estava se formando no país. Ela
estava lutando uma guerra sem fim e sem esperança com chechenos, que se
espalhou ao Daguestão. A segurança nacional era garantida apenas por armas
nucleares, pois para realizar qualquer operação séria, mesmo dentro de suas
próprias fronteiras, o exército não tinha nem pessoal treinado nem equipamentos
modernos, a frota não poderia navegar, e a aviação não poderia voar.
Com certeza, qualquer um
pode dizer como a indústria, incluindo a militar, foi revivida gradualmente,
como o crescente nível de vida estabilizou a situação interna, como o exército
foi modernizado.
Mas, a pergunta-chave não
é quem fez mais para reconstruir o exército russo: Shoygu, Serdukov ou o
Estado-Maior. A questão fundamental não é quem é o melhor economista, Glaziev
ou Kudrin, e se seria possível alocar ainda mais recursos para as despesas
sociais.
O fator chave desconhecido
nessa empreitada é o tempo. Mas, como a Rússia teve tempo? Por que os EUA deram
tempo à Rússia para preparar a resistência, para crescer o músculo econômico e
militar, para aniquilar o lobby pró-americano financiado pelo Departamento de
Estado na política e nos meios de comunicação?
Por que o confronto
aberto, no qual estamos agora à frente de Washington, não começou mais cedo, 10
a 15 anos atrás, quando a Rússia não tinha chance de suportar sanções? Na
realidade, os EUA, na década de 1990 ou de 2000. começaram a instalar regimes
fantoches no espaço pós-soviético, incluindo Moscou, que foi considerada uma
das várias capitais da Rússia desmembrada.
O
conservadorismo saudável dos diplomatas.
As condições do sucesso
militar e diplomático de hoje foram construídas por décadas na frente invisível
(diplomática).
Deve ser dito que, entre
ministérios centrais, o Ministério dos Assuntos Exteriores foi o primeiro a
recuperar-se da confusão administrativa decorrente do colapso do fim da década
de 1990. Ainda em 1996, Evgeny Primakov tornou-se Ministro dos Assuntos Exteriores,
e, além de virar de volta o avião do governo sobre o Atlântico ao saber da
agressão dos EUA contra a Jugoslávia, virou também a política externa russa
que, depois disso, nunca mais seguiu o curso dos Estados Unidos.
Dois anos e meio mais
tarde, ele recomendou Igor Ivanov como seu sucessor, o qual lentamente (de
forma quase imperceptível), mas certamente, continuou a fortalecer a diplomacia
russa. Ele foi sucedido em 2004 pelo atual ministro Sergey Lavrov, sob cuja
liderança a diplomacia acumulou recursos suficientes para mudar de uma posição
de defesa para uma contundente posição ofensiva.
Entre estes três
ministros, só Ivanov recebeu a medalha Estrela de Herói; mas, tenho certeza de
que seu antecessor e seu sucessor são igualmente merecedores desse prêmio.
Deve ser dito que a
tradicional proximidade de castas e o conservadorismo saudável do corpo
diplomático contribuíram para o rápido restabelecimento do trabalho do
Ministério dos Assuntos Exteriores. O tradicionalismo e a paciência de que os
diplomatas são acusados ajudaram. "Kozyrevshchina" [a palavra é
derivada do nome de Andrei Kozyrev, Ministro dos Assuntos Exteriores de 1990 a
1996; a palavra significa "agir como Kozyrev", ou seja, de forma
subserviente, contra seus próprios interesses – nota do tradutor] nunca pegou
no Ministério dos Assuntos Exteriores porque não se encaixava.
Período
de consolidação interna.
Vamos voltar a 1996. A
Rússia está no fundo do poço, economicamente, mas o padrão de 1998 ainda está à
frente. Os EUA desconsideram totalmente o direito internacional, substituindo-o
por suas ações arbitrárias. A OTAN e a UE estão se preparando para mover-se
para a fronteira russa.
A Rússia não tem nada com
o que responder. A Rússia (como a URSS antes dela) pode aniquilar qualquer agressor
em 20 minutos; mas, ninguém planeja combatê-la. Qualquer desvio da linha
aprovada por Washington, qualquer tentativa de conduzir uma política externa
independente, conduziria ao estrangulamento econômico e à desestabilização
interna subsequente – naquele tempo, o país dependia de créditos ocidentais.
A situação é ainda mais
complicada pelo fato de que, até 1999, o poder está nas mãos da elite
compradora em dívida com os EUA (como o atual poder ucraniano), e, até
2004-2005, os compradores ainda estão lutando pelo poder com a burocracia
patriótica de Putin. A última batalha na retaguarda, dada pelos compradores a
perder, foi uma tentativa de revolução em 2011, na Praça Bolotnaya. O que será
que teria acontecido se eles tivessem feito essa insurreição em 2000, quando
tinham uma vantagem esmagadora?
Os líderes russos
precisavam de tempo para consolidação interna; para restauração dos sistemas
econômico e financeiro, garantindo sua autossuficiência e independência do
Ocidente; e para reconstruir um exército moderno. Finalmente, Rússia precisava
de aliados.
Os diplomatas tinham uma
missão quase impossível. Era necessário, sem recuar sobre questões-chave,
consolidar a influência da Rússia nos Estados pós-soviéticos, aliar-se com
outros governos resistindo os EEUU, reforçando-os, se possível, e ao mesmo
tempo criar uma ilusão em Washington de que a Rússia era fraca e estaria pronta
a fazer concessões estratégicas.
A
ilusão da fraqueza da Rússia
Uma demonstração do fato
de que essa tarefa foi alcançada com êxito são os mitos que ainda estão vivos
entre alguns analistas Ocidentais e "oposição" russa pró-americana.
Por exemplo, se a Rússia se opõe a alguma instância do aventureirismo
ocidental, está "blefando para salvar a pele"; as elites russas são
totalmente dependentes do Ocidente porque "o dinheiro está lá";
"a Rússia trai seus aliados".
No entanto, os mitos de
que "foguetes enferrujados não voam", "soldados com fome estão
construindo moradias para generais", e sobre "economia em
frangalhos" praticamente desapareceram. Apenas marginais [os que estão
‘fora dos livros’, aquém do limite dos discursos; com referência à posição
filosófica – N.T.] acreditam nisso – esses marginais não são realmente
incapazes, mas têm medo de reconhecer a realidade.
Essas ilusões de fraqueza
e prontidão para retroceder que enganaram o Ocidente na crença de que a questão
russa fora resolvida e detiveram rápidos ataques políticos e econômicos em
Moscou deram à liderança russa o precioso tempo para reformas.
Naturalmente, nunca há
muito tempo, e a Rússia teria preferido adiar o confronto direto com os EUA,
que começou em 2012-13, por mais 3-5 anos, ou até mesmo evitá-lo completamente;
mas, a diplomacia ganhou 12 a 15 anos para o país – um enorme período de tempo
no mundo rapidamente em mudança de hoje.
Diplomacia
russa na Ucrânia.
Para economizar espaço,
vou dar apenas um exemplo muito claro, muito relevante na situação política
atual.
As pessoas ainda culpam a
Rússia por não conter os EUA na Ucrânia de forma suficientemente ativa, por não
conseguir criar uma "quinta coluna" pró-russa para contrabalançar a
pró-americana, por trabalhar com as elites e não com as pessoas, etc. Avaliemos
a situação com base em capacidades reais, ao invés de ilusões.
Apesar de todas as referências
aos cidadãos, é a elite que determina a política do Estado. A elite ucraniana,
em todas as suas ações, sempre foi e ainda é anti-russa. A diferença é que a
elite ideologicamente nacionalista (gradualmente se tornando nazista) era
abertamente russofóbica, enquanto que a elite econômica (compradora,
oligárquica) era simplesmente pró-ocidental mas não se opunha às ligações
lucrativas com a Rússia.
Eu gostaria de lembrá-lo
que não foram outras pessoas, mas representantes do supostamente pró-russo
Partido das Regiões que gabavam-se de que não permitiriam negócios russos em
Donbass. Eles também eram aqueles que tentaram convencer o mundo que eram
melhores para a integração europeia do que os nacionalistas.
O regime de
Yanukovich-Azarov precipitou o confronto econômico com a Rússia em 2013,
exigindo que apesar de a Ucrânia assinar o tratado de associação com a EU, a
Rússia retivesse e até mesmo aprimorasse um regime favorável à Ucrânia. Afinal
de contas, Yanukovich e seus companheiros no Partido das Regiões, enquanto
tinham poder absoluto (2010-2013), suportaram nazistas informativamente,
financeiramente e politicamente. Eles os trouxeram de nicho marginal à política
dominante a fim de ter um adversário conveniente nas eleições presidenciais, em
2015, enquanto suprimiram qualquer atividade informativa pró-Rússia (para não
mencionar atividade política).
O partido comunista
ucraniano, mantendo a retórica pro-Rússia, nunca teve uma chance no poder e
desempenhou um papel de oposição leal conveniente indiretamente apoiando
oligarcas, canalizando a atividade de protesto em locais seguros para qualquer
poder (incluindo o atual).
Nessas condições, qualquer
tentativa russa de trabalhar com ONGs ou criar uma mídia pró-Rússia seria
percebida como uma invasão dos direitos dos oligarcas ucranianos para roubar o
país sozinha, o que causaria outro deslize do oficialismo ucraniano em direção
ao Ocidente, visto por Kiev como um contrapeso para a Rússia. Os EUA, muito
naturalmente, veriam isso como transição da Rússia para o confronto direto e
iriam redobrar seus esforços para desestabilizar a Rússia e apoiar elites
pró-ocidentais em todo o espaço pós-soviético.
Nem em 2000, ou em 2004, a
Rússia estava pronta para confrontar abertamente os EUA. Mesmo quando (não por
escolha de Moscou) isso aconteceu em 2013, a Rússia precisava ainda de cerca de
dois anos para mobilizar seus recursos a fim de dar uma forte resposta ao
conflito na Síria. A elite Síria, em contraste à ucraniana, desde o início
(2011-2012) rejeitou a opção de se comprometer com o Ocidente.
É por isso que, durante 12
anos (a partir de ação "Ucrânia sem Kuchma", que foi a primeira
tentativa de golpe pró-americano na Ucrânia), a diplomacia russa trabalhou em
duas frentes principais.
Primeiro, ela procurou
manter a situação na Ucrânia em equilíbrio instável; segundo, ela procurou
convencer a elite ucraniana de que o Ocidente era um perigo para seu bem-estar,
enquanto que uma reorientação para a Rússia seria a única forma de estabilizar
a situação e salvar o país, bem como a posição da elite em si.
A primeira tarefa foi
alcançada com êxito. Os EUA conseguiram alternar o modo multidirecional da
Ucrânia para o modo anti-russo somente em 2013, tendo gasto uma enorme
quantidade de tempo e recursos e tendo adquirido um regime com enormes
contradições internas, incapaz de existir independentemente (sem crescente
apoio americano). Em vez de usar recursos ucranianos em seu benefício, os EUA é
forçado agora a gastar seus próprios recursos para prolongar a agonia do Estado
ucraniano destruído pelo golpe de estado.
A segunda tarefa não foi
realizada devido a razões objetivas (independente dos esforços da Rússia). A
elite ucraniana acabou por ser totalmente inadequada, incapaz de pensamento
estratégico, de avaliar os riscos reais e as vantagens, mas vivendo e agindo
sob a influência de dois mitos: primeiro – o Ocidente vai facilmente ganhar em
qualquer confronto com a Rússia e partilhar os despojos com a Ucrânia; segundo
– nenhum esforço, exceto a inabalável posição anti-russa, é necessário para uma
existência confortável (às custas de financiamento ocidental). Na situação de
escolha entre voltar-se para a Rússia e sobreviver, ou tomar o lado do Ocidente
e morrer, a elite ucraniana escolheu a morte.
No entanto, mesmo com a
escolha negativa da elite ucraniana, a diplomacia russa conseguiu vantagem
máxima. A Rússia não se deixou atolar num confronto com regime ucraniano,
forçando Kiev e o Ocidente a um processo de negociação cansativo tendo como
pano de fundo uma guerra civil moderada e excluindo os EUA do formato de Minsk.
Centrando-se nas contradições entre Washington e a UE, a Rússia conseguiu
sobrecarregar financeiramente a Ocidente com a Ucrânia.
Como resultado, a posição
consolidada inicialmente de Washington e Bruxelas se desintegrou. Quanto à
ofensiva-relâmpago [blitzkrieg] político-diplomática, os políticos europeus não
estavam preparados para um confronto prolongado; a economia da UE simplesmente
não podia apoiá-lo. Por sua vez, os EUA não estavam prontos a aceitar Kiev
exclusivamente na própria folha de pagamento.
Hoje, após um ano e meio
de esforços, a "velha Europa", que determina a posição da UE, como a
Alemanha e a França, abandonou a Ucrânia completamente e está procurando uma
maneira de estender uma mão para a Rússia sobre as cabeças limítrofes do Leste
Europeu pró-americano (Polônia e Países Bálticos). Até Varsóvia, que costumava
ser o principal "defensor" de Kiev na União Europeia, abertamente
(embora semi-oficialmente) sugere a possibilidade de dividir a Ucrânia, tendo
perdido a fé na capacidade das autoridades de Kiev a manter o país unido.
Na comunidade política e
de especialistas ucraniana, a histeria sobre "a traição da Europa"
está crescendo. O ex-governador da região de Donetsk (nomeado pelo regime
nazista) e oligarca Taruta Sergey afirma que seu país tem mais oito meses de
existência. O oligarca Dmitry Firtash (que tinha a reputação de "rei
criador" ucraniano) prevê a desintegração na primavera.
Tudo isso, silenciosa e
imperceptivelmente, sem o uso de tanques e da aviação estratégica, foi
conseguido pela diplomacia russa. Alcançado em um confronto difícil com o bloco
dos países mais poderosos, militar e economicamente, a partir de uma posição
muito mais fraca e com os aliados mais peculiares, nem todos felizes sobre o
crescimento do poder russo.
Avanço
no Médio Oriente.
Em paralelo, a Rússia
conseguiu: retornar ao Oriente; reter e desenvolver a integração dentro do
espaço pós-soviético (União Econômica Eurasiana); juntamente com a China,
implantar um projeto de integração da Eurásia (Organização de Cooperação de
Xangai); e dar início a um projeto de integração global através do grupo BRICS.
Infelizmente, o espaço
limitado não nos permite discutir em detalhes todas as ações estratégicas da
diplomacia russa nos últimos 20 anos (a partir de Primakov até hoje). Um estudo
abrangente tomaria muitos volumes.
No entanto, quem quiser
tentar responder honestamente como Rússia conseguiu, dentro de 20 anos, sem
guerras ou convulsões, levantar-se de uma posição de semicolônia a uma posição
de líder reconhecida do mundo, teria que reconhecer as contribuições de muitas
pessoas na Smolenskaya Square [onde o Ministério dos negócios estrangeiros está
localizado – nota do tradutor]. Seus esforços não toleram barulho ou
publicidade; mas, sem sangue e sem vítimas, produzir resultados comparáveis aos
obtidos por exércitos de milhões em muitos anos.
Rostislav Ischenko.
Tradução de Marisa
Choguill.
Link desta matéria:http://www.voltairenet.org/article189665.html
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