Como sabemos, as eleições de outubro próximo não representarão o fim da crise de hegemonia em que vivemos hoje. Tal crise aliás não é um fenômeno nacional, mas um capítulo (trágico) de uma crise que se espraia sobre todo o capitalismo. Essa constatação independe do eleito.
Em toda a parte, por exemplo, a extrema direita cresce e ameaça a democracia e os direitos fundamentais e em toda parte os valores que construíram o século XX, dentre os quais os Direitos Humanos, estão ameaçados. Na América Latina, em especial, voltamos à era dos golpes de Estado e do aniquilamento das conquistas dos trabalhadores.
Mesmo assim, apesar da recuperação do Poder Político pela direita em diversos países da região, a dualidade de Poderes continua presente em todas essas sociedades e naqueles países em que a esquerda foi desapeada do Poder comumente ela permanece com força e penetração na sociedade, ameaçando recuperar a governança quando a vida democrática voltar à sua normalidade.
O Brasil não é diferente. A virtual eleição de Haddad/Lula, que estará (ou estarão) no segundo turno, na verdade, põe sobre os seus ombros a responsabilidade de lançar as bases para que essa crise de hegemonia possa começar a ser superada entre nós. Disso depende não somente a vitória eleitoral definitiva no segundo turno, pois nele deverá representar mais do que o PT, um projeto de país, como também o que poderá ser feito depois como verdadeira reconstrução nacional, o que significará necessariamente ter que converter essa guerra inequívoca num pós-guerra definitivo.
Esse pós-guerra eleitoral e pós-golpe não será uma etapa idílica onde os vitoriosos farão o que quiserem. Não. Trata-se de um reposicionamento em vantagem para o lado vitorioso para continuar negociando saídas pactuadas para que a estabilidade política seja retomada e a vida nacional possa ir adiante. É preciso também que existam interlocutores fiáveis e representativos das classes fundamentais, fato que com o fortalecimento da Extrema Direita e a debacle dos partidos da direita tradicional, está inviabilizado na atual quadra da política.
A direita tradicional, em outros termos o PSDB e a sua constelação de aliados, precisa, portanto, de tempo para recuperar o que cedo ou tarde vai voltar para ela: o seu eleitorado devolvido pelos arrependimentos morais e políticos que terá com a Extrema Direita quanto mais essa exponha a sua brutalidade e simplismo. É essa direita tradicional, entretanto, representante orgânica que é do mundo burguês, a interlocutora de longo prazo com a qual, por inevitável, o PT e os seus aliados estarão obrigados a conviver no que poderíamos chamar de ”melhor cenário”: o Estado de direito pleno e garantidor das prerrogativas e direitos de cada um.
Portanto, se eles precisam de prazo nós precisamos recuperar a democracia. Esse é um cenário onde as eleições poderão estar nos brindando com um enfrentamento entre a civilidade e a barbárie no qual não poderemos subestimar a importância de vencer a extrema direita. Isso impõe a Haddad um papel que estará acima da representação do PT e de seus aliados, pois ele deverá ter que representar nessa contenda o polo civilizado em eleições onde os abismos estarão muito próximos.
Como conciliar tudo isso?
Obviamente que parte do desafio é de ordem atitudinal. É preciso que o candidato do PT se mostre homem de diálogo, não somente para com os seus aliados, como também para com aqueles que, embora tenham trilhado pelos caminhos tortuosos do golpe às instituições, são, para além de nossas vontades, interlocutores incontornáveis para o retorno (cedo ou tarde) à vigência de um Estado de direito sem adjetivos. Portanto é melhor que seja cedo.
O que Haddad pode oferecer? Um novo pacto com base nos resultados de uma Constituinte Livre e Soberana a ser convocada tão logo assuma o Poder a ocorrer num horizonte de um ano, dando fôlego à direita de se recompor do ponto de vista da sua representação partidária, hoje em mulambos, e de contornar o fascismo.
O que Haddad não pode oferecer? Obviamente que a agenda inegociável deverá ser assumida de forma estudada, mas a decisão de levar a Referendum coisas como a EC 95 que congela os gastos públicos por 20 anos, a terceirização da mão de obra, a venda da Embraer ou o perdão fiscal às petroleiras poderá estar numa paleta mais imediata, deixando outras discussões para a própria Constituinte.
Não pretendo aqui, é claro, dar receita detalhada para um problema que é complexo. Porém o compromisso com uma Constituinte agendada para etapa posterior ao caos em que a direita tradicional está mergulhada poderá ampliar a base eleitoral de Haddad no enfrentamento da extrema direita e contribuir para balizar saídas para a atual crise de hegemonia à luz de uma nova pactuação que seja capaz ao menos de consolidar no Brasil um Estado de direito menos sujeito ao golpismo.
Nada disso poderá ser feito com ingenuidade. Nunca mais poderemos esquecer com quem estamos lidando. Não devemos fazer isso movidos por um espírito democrático ingênuo, mas por entender que não há alternativa civilizada à consolidação da democracia.
Conduzir esse processo renderá perante a nação ao polo partidário do Proletariado, (o PT e seus aliados), o mérito de ter novamente conduzido o Brasil à democracia, arena estratégica para continuar avançando nas lutas.
O fato de não poder haver pacto político agora, tanto pelo mal que foi feito, quanto pela falta de interlocutores legítmos e representativos no campo da direita não significa que, de comum acordo, as forças em disputa não aceitem respeitar os resultados de uma Constituinte Livre e Soberana convocada quando as representatividades possam ter voltado para os seus lugares.
Se isso ocorrer Haddad terá tarefas bem diferentes das que fizeram os governos Lula.
Ion de Andrade - Médico e professor universitário. É colaborador de uma instituição social ligada à igreja católica num bairro popular de Natal. Está concentrado no estudo dos avanços sociais e da emancipação das periferias como fatores da ampliação da democracia política. É autor do livro “A Hipótese da Revolução Progressiva” que propõe um novo modelo de transição ao socialismo.
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