Leonam dos Santos Guimarães
Um medo exagerado de armas
nucleares tem levado a muitas políticas que insistem no erro de
considerar que elas são desenvolvidas pelos países com intuito de
ameaçar. A História nos mostra que a busca pela sua posse é muito mais
uma resposta à ameaça percebida do que a preparação para uma agressão.
Gênesis
Um personagem pouco conhecido, o físico húngaro Leo Szilard, é a quem
se deve o invento das armas nucleares. Foi ele quem, ao tomar
conhecimento da interpretação correta de Lize Meitner e Otto Frisch
sobre os resultados dos experimentos de Otto Hahn, que identificaram o
fenômeno da fissão nuclear do urânio na Alemanha Nazista em 1939,
concebeu a possibilidade de, com base nesse fenômeno físico recém
descoberto, montar um dispositivo explosivo, tendo chegado a depositar
uma patente de tal artefato na Grã-Bretanha.
Como judeu refugiado do nazismo na Grã-Bretanha, a possibilidade de que
essa mesma idéia pudesse ser concebida na Alemanha o obcecava. Szilard
tinha razão, já que isso era realmente muito provável sabendo-se que os
experimentos que lhe deram origem foram feitos lá e o regime nazista
contava com eminentes físicos nucleares, dentre eles Heisenberg. Com
efeito, este último veio a ser o líder dos incipientes esforços nazistas
nesse sentido que, entretanto, nunca chegaram nem de perto do êxito.
Szilard viajou aos EUA para convencer Einstein, já então personagem
mundialmente conhecido e respeitado, dessa possibilidade. Teve êxito em
convencê-lo a assinar a famosa carta Einstein-Szilard, datada de 2 de
agosto de 1939, que afirmava ao Presidente Roosevelt que a arma nuclear
era tecnicamente viável e incentivava os EUA a dar início imediato a um
programa científico e tecnológico para desenvolvê-la.
Einstein posteriormente se arrependeu de ter assinado a carta, já que
ela levou não só ao desenvolvimento, mas também ao seu uso contra
populações civis. Ele justificava sua decisão ao grande perigo que havia
da Alemanha Nazista ser a primeira a desenvolvê-la e à certeza de que
ela a usaria quando a obtivesse.
A carta de Einstein-Szilard foi o catalisador do Projeto Manhattan, que
desenvolveu e testou as primeiras armas nucleares. Obviamente esse
projeto foi uma resposta a uma grave ameaça percebida. O êxito americano
sobreveio com o primeiro teste, denominado “Trinity”, de um artefato de
plutônio em 16 de julho de 1945.
As razões da decisão pelo uso das primeiras bombas sobre Hiroxima
(artefato de urânio, em 6 de agosto de 1945) e Nagazaki (artefato de
plutônio, em 9 de agosto seguinte), desenvolvidas em resposta a essa
suposta ameaça que, com rendição da Alemanha em 7 de maio 1945, não se
concretizou, é até hoje tema controverso.
Entretanto, um dos fatores que certamente pesou nessa decisão do
presidente Trumman foi o fato de que, pouco antes dos bombardeios, a
URSS ter declarado guerra ao Japão e estar se preparando para invadi-lo
pelo norte, o que poderia fazer antes que os americanos o fizessem pelo
sul.
Note-se que a revolução chinesa de Maozedong ainda estava na “Longa
Marcha”, mas já existiam fortes indícios que poderia ser vitoriosa, como
realmente o foi, ampliando em muito a ameaça de domínio comunista do
extremo oriente.
Além disso, durante a Conferência de Yalta, 4-11 de fevereiro de 1945,
Roosevelt sugeriu a Stalin que seu país detinha uma nova e formidável
arma. Certamente a inteligência soviética sabia de mais detalhes.
Logo, a decisão de usar as bombas foi também uma resposta à ameaça dos
soviéticos que, após terem assumido o controle de grande parte da
Europa, pudessem fazer o mesmo no Japão. Isto tornava a rendição
incondicional do Japão o mais breve possível uma máxima prioridade do
governo americano.
URSS
Com efeito, os soviéticos chegaram a invadir as Ilhas Sakalina, no
extremo norte do Japão, 88 dias antes do bombardeio de Hiroxima, mas a
rendição incondicional que se seguiu aos bombardeios nucleares os
impediu de ocupar maiores parcelas do território japonês, que foi
rapidamente ocupado pelos EUA.
Obviamente, após os bombardeios nucleares sobre as cidades japonesas,
os soviéticos se sentiram fortemente ameaçados pelo poderio nuclear
americano e elevaram o programa de desenvolvimento de armas nucleares,
que já existia de forma incipiente, a máxima prioridade nacional,
envolvendo inclusive expressivas ações de espionagem nos EUA, dos quais o
mais conhecido é o caso do casal Rosemberg.
A URSS obteve êxito em 29 de agosto 1949, com seu primeiro teste do
artefato RDS-1 denominado “First Lightning” (Joe-1 na nomenclatura
americana).
Grã-Bretanha
Os britânicos, por sua vez, se sentiram fortemente ameaçados pelas
armas nucleares soviéticas, que naquela época ainda não tinham meios
apropriados de lançamento para atingir os EUA. Desenvolveram, então,
suas próprias, obtendo êxito em 1952, com uma série de testes realizados
no sítio de Nevada, nos EUA e, finalmente, seu primeiro teste
independente em 14 de outubro de 1953 (“Operation Totem”), realizado na
Austrália.
Apesar da aliança com os EUA e da grande vontade política de afirmação
do poder nacional, as experiências históricas britânicas com a
influência da política de isolacionismo americana, e conseqüente demora
dos EUA em se engajarem nas duas guerras mundiais, certamente
contribuíram para amplificar a percepção da ameaça russa. O
“guarda-chuva” americano de proteção não foi considerado suficiente à
época.
França
Durante a primeira guerra da Indochina, em 1954, os franceses em
dificuldades pediram apoio material à Grã-Bretanha para desenvolverem
sua arma nuclear, em resposta à ameaça que representava o avanço das
forças de Ho Chi Minh. Entretanto, esse auxílio não chegou a tempo e a
França foi fragorosamente derrotada em Dien Bien Phu em 7 de maio de
1954.
Nesse mesmo ano um programa de desenvolvimento de armas nucleares foi
formalmente lançado pelo presidente Mendès-France, obtendo êxito em 13
de fevereiro de 1960, com o teste “Gerboise Bleue”, no deserto da
Argélia. Esse fato reafirmou a posição francesa como potência mundial
após o revés indochinês. Note-se que na ocasião do teste francês, a
guerra da Argélia estava em andamento e a posse da arma nuclear não
impediu a derrota francesa em 1962.
China
Desde a vitória do comunista Maozedong sobre o nacionalista Chiang
Kai-Shek, apoiado pelos EUA, em 1 de outubro 1949, a China passou a se
sentir ameaçada pelos americanos, especialmente pelo reconhecimento do
governo de Taiwan e não reconhecimento do governo comunista de Pequim.
Esta situação que permaneceu até 23 de novembro de 1971, quando a China
comunista assumiu o assento da China nacionalista no Conselho de
Segurança da ONU.
O apoio chinês à Coréia do Norte durante a guerra da Coréia (1950-53),
na qual os EUA consideraram seriamente o uso de armas nucleares e,
posteriormente, ao Vietnam do Norte, durante a segunda guerra da
Indochina (1962-75) fez com que as pressões americanas sobre a China se
exacerbassem, incluindo um severo embargo econômico.
É célebre a frase do General McArthur, comandante militar dos EUA
durante a guerra da Coréia: “não há substituto para a vitória”. Isso foi
dito no contexto da proposição de uso de armas nucleares no conflito, o
que não foi aceito pelo governo americano da época.
A China, à época, era o “país pária” (“rogue state”, no jargão
americano recente), por excelência. Nesse contexto, a ameaça americana
era percebida de forma aguda pela China. Com efeito, o país desenvolveu
um programa de armas nucleares que alcançou êxito em 16 de outubro de
1964 testando o chamado “artefato 59-6” em Lop Nur, sem ajuda direta dos
soviéticos.
A Rússia via com preocupação uma China nuclearizada considerando a
deterioração das relações entre os dois países desde o final dos anos
50. Com efeito, o rompimento sino-soviético ocorreu, chegando a
ocorrerem choques fronteiriços de março a setembro de 1969.
Israel
A independência do estado de Israel foi declarada em 14 de maio de 1948
e os estados árabes vizinhos atacaram o país no dia seguinte. Desde
então, a percepção de ameaça em nada diminuiu, pelo contrário, tendo o
país travado uma série de guerras subseqüentes.
Obviamente, como resposta a essa ameaça, já em 1949 os israelenses
iniciaram, ainda de forma incipiente, um programa de desenvolvimento de
armas nucleares. Esse programa tomou grande impulso em 1956, com a
transferência de tecnologia da França, que a mesma época acelerava seu
próprio programa, materializada pela venda do reator grafite-gaz
plutonígeno de Dimona, que opera até hoje.
O momento exato em que o programa israelense teve êxito é controverso.
Há fontes que afirmam que já durante a guerra dos seis dias, em junho de
1967, Israel possuía algumas poucas armas. Certamente após essa guerra,
Israel passou a produzir em escala armas nucleares, como resposta ao
aumento da ameaça.
Por razões evidentes, Israel nunca aderiu ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) de 1968.
Em 1973 a ameaça voltou a se concretizar com a Guerra do Yom Kippur,
ocasião em que diversas fontes afirmam que Israel avaliou seriamente o
uso de seu armamento nuclear, a chamada “Opção Sansão”, caso não tivesse
detido o avanço das tropas árabes sobre seu território, muito limitado
geográficamente.
Note-se aqui que o Sansão bíblico derrubou as colunas do templo sobre
seus inimigos e sobre si próprio. Entretanto, seu povo não se encontrava
dentro do templo. Cabe, portanto, a dúvida quanto a real possibilidade
do governo de Israel “derrubar o templo” com todo sua população, locais
sagrados e infraestrutura dentro dele.
Índia
Já em 1946, no momento da criação do estado indiano, seu primeiro-ministro, Nehru, num discurso histórico afirmou
“Enquanto o mundo for constituído da forma que é, cada país terá que
conceber e usar os dispositivos mais modernos para sua proteção. Não
tenho dúvida que Índia irá desenvolver suas pesquisas científicas e
espero que os cientistas indianos utilizarão a energia atômica para
fins construtivos. Mas se a Índia estiver ameaçada, ela irá
inevitavelmente tentar defender-se por todos os meios à sua disposição”
Tal tipo de ameaça existia desde a criação do estado indiano,
decorrente das fortes tensões geradas pela simultânea criação do
Paquistão. Entretanto, foi outra ameaça a que se consubstanciou de 20 de
outubro a 20 de novembro de 1962, com a eclosão da guerra contra a
China por disputas fronteiriças. Esse conflito foi notável pelas
condições adversas em que grande parte dos combates tiveram lugar, a
altitudes de mais de 4.250 metros.
O apoio que a Índia deu ao Tibete na sublevação contra a China em 1959,
chegando a dar asilo ao Dalai Lama, líder do levante, foi fator
determinante desse conflito. Note-se que o Dalai Lama permanece até hoje
na Índia liderando o governo tibetano no exílio, ou seja, as tensões
permanecem, vide os conflitos civis que continuam se repetindo no
Tibete.
Fato curioso é que a guerra sino-indiana coincidiu com a crise dos
mísseis de Cuba. Esse evento histórico tem sido considerado como aquele
em que a humanidade mais próximo chegou de uma guerra nuclear.
Entretanto, nem russos nem americanos lançaram mão da sua “opção
Sansão”, reforçando a dúvida quanto a possibilidade de em algum momento
uma nação venha a decidir “derrubar o templo” sobre si mesma.
Obviamente, a Índia respondeu a ameaça chinesa e àquela decorrente das
tensões com o Paquistão, que se exacerbaram após a guerra com a China,
com um programa de desenvolvimento de armas nucleares que teve êxito em
18 de maio de 1974, com o teste denominado “Buda sorridente”.
Esse programa contou com a ajuda involuntária do Canadá, que transferiu
a Índia um reator de água pesada com o qual foi produzido o plutônio
usado no artefato. Note-se que a Índia, engajada que estava nesse
programa, nunca aderiu ao TNP.
Paquistão
O Paquistão, em resposta à ameaça decorrente das tensões com a Índia e a
informações que a mesma estaria próxima de obter sua arma nuclear,
lançou seu programa de desenvolvimento em 1972. Em 1974, em resposta ao
primeiro teste nuclear indiano, o primeiro-ministro do Paquistão, Ali
Bhutto anunciou:
“Se a Índia constrói a bomba, nós comeremos grama e folhas por mil
anos, mesmo ficando com fome, mas nós também construiremos a nossa. Os
cristãos têm a bomba, os judeus têm a bomba e agora os hindus têm a
bomba. Por que os muçulmanos não teriam a bomba?”
O programa paquistanês, evidente resposta a ameaça indiana foi
impulsionado pelas atividades ilícitas do Dr. Kahn na Holanda, obtendo
informações técnicas sobre as centrífugas de enriquecimento de urânio da
empresa URENCO. O êxito foi demonstrado em 28 de maio de 1998, com o
teste de cinco artefatos (operação Chagai I) poucas semanas após o
segundo teste nuclear da Índia (operação Shakti, 11-13 de maio de 1998).
Após o êxito do programa paquistanês, o Dr. Kahn, movido por interesses
comerciais próprios, criou um “mercado negro”, ofertando materiais e
componentes para centrífugas de enriquecimento de urânio, com
envolvimento, do lado da demanda, da Líbia, Coréia do Norte e Iran.
Desmascarada sua rede de tráfico, ele chegou a ser posto sob reclusão
domiciliar pelo governo paquiatanês.
África do Sul
Tendo sido proscrito pela comunidade internacional e sofrido severas
sanções, além das enormes tensões raciais que gerou, o regime do
“Apartheid” da África do Sul sempre se percebeu fortemente ameaçado,
tanto interna como externamente. No início da década de 70, com o
atabalhoado processo de descolonização de suas possessões na África
levado a cabo por Portugal, que desembocou na Revolução dos Cravos de
1974 e na derrubada da ditadura Salazar, eclodiram guerras civis em
Angola e Moçambique.
A África do Sul de um lado e a URSS de outro, mergulharam fundo nessas
sangrentas guerras civis. As facções comunistas se impuseram e a África
do Sul, portanto, se sentiu fortemente ameaçada pela propagação dessas
guerras ao seu próprio território, tendo chegado a invadir o sul de
Angola.
A África do Sul sofreu vários reveses frente às tropas oponentes e,
considerando a importância geopolítica de seu território para a URSS,
bem como as tensões raciais internas, criadas pelo próprio regime, se
percebeu fortemente ameaçada.
A resposta a essa forte ameaça, como sempre ocorre com países que
tenham uma razoável capacidade econômica e técnico-científica, foi
acelerar o programa de desenvolvimento de armas nucleares.
O momento do êxito desse programa é incerto, mas em 1976-77 foram
concluídos 2 poços profundos para testes subterrâneos, que nunca
chegaram a ser usados. Em 22 de setembro de 1979 ocorreu o célebre
“incidente Vela” que constituiu o teste nuclear de um pequeno artefato
numa balsa flutuando ao sul do Cabo da Boa Esperança. Existem fortes
evidências que esse teste foi realizado em colaboração com Israel que,
por suas características geográficas não tem a menor possibilidade de
realizá-los em seu território.
Em 1989, com a vitória de Nelson Mandela e queda do regime de
“Apartheid”, a África do Sul desmontou seu arsenal nuclear, composto por
seis artefatos, sob supervisão da Agência Internacional de Energia
Atômica (AIEA).
À parte da mudança de regime, note-se que a percepção de ameaça tinha
se extinguido com a retirada dos soviéticos das guerras civis nos países
vizinhos há alguns anos.
Ucrânia, Kazaquistão e Bielo-Rússia
Em 1991 sobrevém o caso especial dos países surgidos após a dissolução
da URSS que possuíam armas nucleares soviéticas em seus territórios:
Ucrânia, Kazaquistão e Bielo-Rússia.
Nos dois últimos, a devolução das armas foi feita de forma
relativamente simples e rápida devido às “relações íntimas” que esses
países tinham e continuam mantendo com a Rússia, de onde eles não
percebem nenhuma ameaça.
O caso da Ucrânia é mais complexo. Apesar de compartilharem uma
história comum com a Rússia (a palavra “Rússia” se origina do nome do
rio Rus, que fica na Ucrânia), as duas regiões, apesar de irmanadas,
acumularam tensões desde o final do Império Russo, passando pela
Revolução de Outubro e pelas duas guerras mundiais.
Pelo menos na parte ocidental e sul da Ucrânia, com maior influência
européia, existe uma percepção difusa de que os Russos poderiam ser uma
ameaça a partir do momento que o país se tornou independente pela
primeira vez na sua história.
Havia, portanto, forças políticas internas que desejavam que as armas
passassem a ser propriedade da Ucrânia. Após árduo processo de
negociação, as armas foram devolvidas, mas tendo a Rússia dado
contrapartidas econômicas (dentre elas a garantia de fornecimento de
combustível para as usinas nucleares ucranianas) e políticas (garantias
de não-agressão).
Isto significa que, dissipada, ou pelos menos muito reduzida, a
percepção de ameaça, os ucranianos abriram mão das armas nucleares,
assim como os sul-africanos.
Talvez, se a Rússia e o resto da comunidade internacional tivessem
exercido fortes pressões sobre a Ucrânia, com sanções e toda a receita
habitual, o processo de desarmamento nuclear não tivesse ocorrido. Isso
seria viável na medida em que, diferentemente do Kazaquistão e
Bielo-Rússia, na Ucrânia existia capacidade técnica e infraestrutura
industrial para manter e mesmo desenvolver esse arsenal.
Líbia
Por diversas razões, mas principalmente pelo apoio explícito de Muhamar
Kadafi ao terrorismo, as potências ocidentais exerceram forte pressão
política sobre a Líbia, também com sanções e toda a receita habitual. Os
EUA chegaram a posicionar uma força-tarefa na costa do país e executar
ações de bombardeio naval e aéreo de sua capital, uma delas causando a
morte do próprio filho de Kadafi.
As tentativas mal sucedidas de desenvolvimento de armas nucleares pela
Líbia foram, portanto, uma clara resposta a essas ameaças. Sem
infraestrutura técnico-científica adequada, a Líbia baseou seu programa
na rede de tráfico de equipamentos criada pelo paquistanês Dr. Kahn,
tendo sido desmascarada pela apreensão de cargas suspeitas em navio
apreendido no Mediterrâneo.
Após esse evento, negociações com os EUA, que certamente reduziram a
percepção de ameaça, fizeram Kadafi abandonar seu programa, que tinha
muito poucas chances de êxito, em 2003.
Iraque
Em 1975, Saddam Hussein, então Vice-Presidente do Iraque, na mesma
linha da declaração do Presidente Paquistanês Ali Bhutto, declarou que a
compra do Reator de Pesquisa Osirak na França, com capacidade de
produzir plutônio adequado à produção de armas nucleares (“weapon
grade”), era o primeiro passo para se chegar à “bomba islâmica”. Só se
pode especular se essa afirmação era uma fanfarronice ou o lançamento de
um real programa de desenvolvimento de armas nucleares.
O fato é que o reator foi construído em 1977 e, em 1980, eclodiu a
guerra Iran-Iraque, que se arrastou até 1988. Em 1980, os iranianos
atacaram Osirak infligindo alguns danos. Em 1981 os israelenses o
destruíram com um ataque aéreo pouco antes de ser feito o carregamento
do seu primeiro núcleo de combustível nuclear.
A guerra com o Iran terminou em 1988 sem um vencedor, mas com enormes
prejuízos humanos e materiais para ambos os lados e sem terem sido
resolvidas as questões que lhe deram origem. Terminada a guerra, a
percepção de ameaça ao país era clara e o Iraque lançou com forte ímpeto
um programa de desenvolvimento de armas nucleares.
Em 1990, o Iraque invadiu o Koweit, dando início à primeira Guerra do
Golfo. Derrotado pela coalizão que se formou, o Iraque foi submetido a
inúmeras sanções impostas pela ONU, com severas conseqüências econômicas
e sociais para a população do país. A ONU impôs também a busca e
destruição de toda a capacidade nuclear que existia no país.
Isto foi feito até 1998, período em que os inspetores da ONU
encontraram diversas instalações que demonstravam a existência de um
programa relativamente avançado, quando o Iraque cessou toda cooperação
com a ONU.
Em 2003 o Iraque foi invadido por tropas americanas e britânicas e sua
ocupação permanece até o momento. Essa chamada segunda campanha no Golfo
foi motivada pela “guerra ao terror” deflagrada pelo governo Bush após o
atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, com a intenção de
interromper um suposto programa de desenvolvimento de armas nucleares
que teria renascido após 1998. Nenhum indício de tal renascimento foi
efetivamente encontrado.
Sob a ressalva da real intenção de produzir armas nucleares por meio do
plutônio produzido pelo reator Osirak, o programa de desenvolvimento de
armas nucleares lançado pelo Iraque após a guerra com o Iran pode ser
atribuído à percepção de ameaça existente no Iraque com relação a Israel
e Iran. As severas sanções impostas ao Iraque depois da primeira guerra
do Golfo, entretanto, parecem não terem motivado um renascimento do
programa após 1998, talvez devido à absoluta carência de recursos.
Cabe aqui ressaltar que o Iraque de Saddam Hussein não tinha armas
nucleares graças aos controles da AIEA impostos após a primeira guerra
do Golfo. Não estava desestabilizando a região nem o mundo e a
intervenção militar de 2003, liderada pelos EUA, foi feita
unilateralmente, sobre aplauso ou silêncio da comunidade internacional,
com uma justificativa não fundamentada.
A segunda guerra do Golfo criou novas tensões que ainda não encontraram
adequado encaminhamento e, principalmente, amplificou a percepção de
ameaça percebida pelos países da região, em especial o Iran.
Coréia do Norte
O espetacular surto de desenvolvimento que levou a Coréia do Sul de uma
condição de país mais pobre do que o Brasil e do que a própria Coréia
do Norte na década de 60, a país desenvolvido hoje, certamente fez
nascer no seu vizinho do norte uma percepção de ameaça, amplificada pela
decadência que ele sofreu no mesmo período. A queda do muro de Berlin
em 1989 induzia uma quase certeza de que o “muro” do paralelo 38 cairia
em seguida, por razões bastante semelhantes.
Essa ameaça levou o regime de Pyongyang a promover um programa de
desenvolvimento de armas nucleares que foi interrompido em 21 de outubro
de 1994, após o “Agreed Framework” firmado com o governo Clinton. Esse
acordo previa uma série de compensações à Coréia do Norte, dentre as
quais a construção de duas usinas nucleares PWR para geração de energia
elétrica em troca do descomissionamento de reator plutonígeno
grafite-gás de Yongbyon.
O acordo, entretanto, não foi plenamente cumprido pelos americanos e
sul-coreanos e, como conseqüência, a Coréia do Norte retirou-se do TNP
em 2003 e, em 9 de outubro de 2006, anunciou ter realizado com êxito seu
primeiro teste nuclear. Esse teste, segundo análises da inteligência
ocidental, não teve pleno êxito e, em 25 de maio de 2009, foi realizado
um segundo teste com sucesso.
Ao fracasso do “Agreed Framework” podem ser imputadas várias razões.
Entretanto, certamente muito contribuiu o interesse que americanos e
sul-coreanos têm na unificação da península, nos mesmos moldes da
Alemanha, faz com que qualquer auxílio político e econômico seja visto
como uma contribuição à continuidade do regime comunista do norte, o que
seria contrário ao objetivo maior de uma Coréia unida sob égide do sul.
O regime norte-coreano parece essencialmente envolvido em um processo
de extorsão de ajuda e reconhecimento externo visando sua perpetuação
num contexto político, econômico e social que lhe é totalmente
desfavorável. É claro que a “dinastia Kim” sabe que o uso de suas armas,
de eficácia duvidosa, representaria o fim do regime, exatamente o que
ele não quer.
Uma política viável em relação a isso seria reduzir o nível de ameaça e
esperar enquanto ele continua tentando obter contrapartidas políticas e
econômicas da comunidade internacional, em especial os EUA e a Coréia
do Sul. Isso certamente é melhor do que conduzir políticas de sanções e
pressão que somente aumentam a grande miséria em que vive o povo da
Coréia do Norte, com pouco ou nenhum efeito sobre seu regime.
Iran
A teocracia do Iran desde seu estabelecimento se sentiu fortemente
ameaçado pelos EUA. Os americanos davam todo apoio ao regime do Xá Reza
Pahlevi, criado após a derrubada do regime nacionalista de Mossadegh,
promovida pelas potências ocidentais, lideradas pela Grã-Bretanha. Os
EUA se envolveram firmemente na resistência do Xá à chamada “revolução
verde” islâmica, liderada pelo Aiatolá Komeini, sem sucesso.
Vitoriosa a revolução, se seguiram uma série de crises entre o Iran e
os EUA, dentre as quais se destaca a malfadada tentativa de resgate de
reféns americanos durante o governo Carter. Esse evento certamente ficou
gravado na psique da sociedade americana, que até hoje requer um
desagravo.
À ameaça americana, se somou a ameaça iraquiana, já que após o
cessar-fogo da guerra que travaram os dois países, era conhecido o
empenho de Saddam Hussein em obter a arma nuclear. A segunda guerra do
Golfo, em 2003, com a invasão e ocupação do Iraque, precedida pela
invasão e ocupação do Afganistão, países que fazem fronteira
respectivamente a oeste e a leste com Iran, amplificaram em muito a
ameaça percebida pelo regime islâmico do Iran.
A resposta a essa ameaça ampliada foi acelerar o programa de
desenvolvimento da tecnologia de enriquecimento de urânio, tornando-o
máxima prioridade nacional. Entretanto, diferentemente da Coréia do
Norte, o Iran sempre afirmou que esse programa é para fins pacíficos,
considerando que o país tem um programa de implantação de usinas
nucleares em parceria com a Rússia.
A mais alta autoridade religiosa do Iran, o aiatolá Khamenei, chegou
até mesmo a afirmar que as armas nucleares contrariam os preceitos da
religião muçulmana, uma postura oposta às declarações anteriores de Ali
Bhutto e Saddam Hussein. Note-se, entretanto, que nenhum desses dois
políticos eram autoridades religiosas.
Adicionalmente, o Diretor Geral da AIEA, Yukiya Amano, empossado em
dezembro de 2009, declarou não existirem nos documentos oficiais da
Agência nenhuma evidência de que o Iran estivesse buscando a capacitação
para desenvolver armas nucleares.
Uma análise serena do caso indica que, muito provavelmente, o governo
iraniano pretende cumprir suas promessas de uso pacífico. Entretanto, o
Iran certamente busca a capacitação na produção do material nuclear que,
potencialmente, poderia ser produzido para fabricação de um artefato.
Parece, porém, que seria muito pouco provável o Iran tomar a decisão de
realmente produzir esse material, pelo menos no curto e médio prazo, já
que isso certamente implicaria na queda do seu próprio regime islâmico,
dada a fortíssima e justificada reação internacional que sobreviria.
Possivelmente o Iran quer ascender à posição de “ser capaz de”, similar
à posição dos demais países que dominam a tecnologia de enriquecimento
de urânio sem possuírem, nem almejarem possuir armas nucleares. Isto por
si só já representa um efeito de dissuasão real, ainda que limitado,
face às ameaças percebidas.
A AIEA propôs ao Iran uma troca de suas cerca de 1,8 toneladas de
urânio enriquecido a nível compatível com o uso em usinas nucleares
(cerca de 3,5%) pelo combustível nuclear para seu reator de pesquisas e
produção de radiosótopos (dentre eles aqueles de uso na medicina),
enriquecido a 20%. O enriquecimento seria feito na Rússia e o
combustível fabricado na França. O Iran rejeitou a proposta e anunciou
dar inicio ao enriquecimento a 20% nas suas instalações.
Face à intransigência do Iran, a comunidade internacional liderada
pelos EUA segue no momento a receita usual de aumentar o nível de ameaça
ao Iran brandindo sanções e toda sorte de pressões políticas.
Esse aumento no nível de ameaça, se corretamente dosado, pode levar o
Iran a retornar às negociações sobre a proposta da AIEA, podendo se
chegar a condições aceitáveis para as ambas as partes.
Note-se que o Brasil é o único país não nuclearmente armado que já
produziu urânio a 20% sob salvaguardas abrangentes da AIEA. Este urânio
foi usado para fabricação do combustível do reator IEA-R1 do IPEN, em
São Paulo, similar ao reator iraniano.
Entretanto, um aumento no nível da ameaça acima da dose correta, com
severas sanções e pressões podendo chegar ao paroxismo de uma ação
militar contra as instalações nucleares iranianas, certamente
estimularia muito o governo iraniano a mudar de posição, não cumprindo
as inúmeras promessas feitas de usos pacíficos de suas unidades de
enriquecimento.
Cabe, porem, ressalvar que a postura dura patrocinada pelos EUA
possivelmente sofre a influência do objetivo maior de descontinuar o
apoio material e financeiro que o regime islâmico fornece às facções
palestinas que mantêm sob pressão constante o estado de Israel, o que
tem impedido novos acordos de paz no Oriente Médio, justamente tão
desejada por toda a humanidade.
Conclusões
A aplicação de diplomacia para redução do nível de ameaça percebido
pelos potenciais proliferantes, incluindo medidas políticas, econômicas e
sociais compensatórias, no esforço de dissuadir esses países de
continuar os seus programas de desenvolvimento de armas nucleares, já
demonstrou ser útil para solução de crises de proliferação nuclear.
Analisando os casos históricos, tudo faz crer que uma abordagem
negociada, como a adotada no caso da Ucrânia, seria muito mais eficaz,
evitando os danos que as eventuais sanções poderão causar ao povo dos
países a elas submetido.
Essa abordagem foi adotada pelo governo Clinton face da Coréia do Norte
em 1994, não tendo obtido os resultados esperados porque os acordos não
foram efetivamente cumpridos pelos americanos e sul-
coreanos, justamente influenciados pelo seu objetivo maior que seria a unificação da península.
Um processo de negociação do abandono de programas de desenvolvimento
de armas nucleares que considere a redução do nível de ameaça percebido,
com medidas econômicas e sociais compensatórias pode ser visto como uma
ação humanitária em favor da população dos países proliferantes, em
geral muito carentes.
O desafio que a comunidade internacional enfrenta é o de estabelecer
estratégias de dissuasão e de contenção de países potencialmente
proliferantes estruturadas e evitar a tentação de revidar impensadamente
sob motivação do medo exagerado ou de “objetivos maiores” não
explicitamente declarados.
Embora a não-proliferação nuclear deva ter uma alta prioridade
política, ela deveria ser resolvida com soluções de compromisso que
evitem políticas que possam levar à morte de dezenas ou centenas ou
milhares de pessoas sob o jugo de sanções.
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Fonte: http://www.defesanet.com.br/geopolitica/noticia/4179/A-%28contra%29-ameaca-nuclear