domingo, 4 de setembro de 2011

O exemplo que não vem de cima. O Legislativo precisa confirmar sua importância, sob pena de acabar sendo uma peça folclórica, além de cara. Um armazém de mercadoria inútil.

 

Uma das indústrias que mais produzem no Brasil é aquela que faz leis, normas e decretos. O problema é que a maior parte da mercadoria fica no armazém, não tem saída. Não sai por que lhes falta regulamentação. Outras vezes, mesmo as regulamentadas, não são aplicadas, "não pegam", não chegam à população. E por que não pegam? Muitas porque são muito ruins mesmo, outras porque nem sempre o que é legal, é real. E algumas porque são forçadas goela abaixo por interesses outros. 

O cipoal de dispositivos jurídicos desnecessários e desconexos é enorme, mas existem ainda aqueles que estão totalmente obsoletos. Dos 180 mil em vigor e que valem para todo o país, cerca de dois mil já podem ser revogados, segundo divulgação em 2008 do Grupo Especial de Consolidação de Leis da Câmara dos Deputados, criado em 1997, reinstalado em 2007 e que não sei se continua trabalhando ou se já parou.
Os exemplos de leis, decretos-lei e normas desnecessários, desconexos ou obsoletos são muitos. Isso ocorre tanto no nível federal, quanto no de estados e municípios. Quer ver uma lei que é legal, mas não é real? A lei mineira que estabelece o peso máximo do material escolar que é transportado por alunos da pré-escola e ensino fundamental. A legislação determina que as escolas públicas e privadas guardem em armários o material excedente e proíbe a cobrança de taxas pela guarda do material. Ora, se há escolas que não têm sequer cadeiras e mesas para todos os alunos, faltam professores, merendeiras e vigias, como vão agora ter armários e se responsabilizar pela guarda de material?

Quer ver uma que foi empurrada goela abaixo para se ganhar dinheiro à custa do contribuinte? A lei que obrigava os motoristas a ter o tal kit primeiros socorros. Foi todo mundo para o comércio procurar os tais kits porque a penalidade para quem não os tivesse era dura. Para que serviam? Para nada, só se fosse para brincar de médico. A vergonha foi tanta que a revogaram.

Além de leis, têm ainda decretos e normas completamente obsoletos que jamais foram revogados, como a da proibição de se fabricar açúcar em casa que, se não me engano, é da época do império. Tem um decreto-lei de 1921 que proíbe o visitante estrangeiro mutilado, com mais de 60 anos de idade, a entrar no país, e aquele que diz que o casamento de diplomatas brasileiros com estrangeiras deve ser autorizado pelo ministro das Relações Exteriores. É claro que são verdadeiros absurdos e não funcionam mais, porém estão todos lá, em pleno vigor.

Os muito ruins, estes chegam a provocar risos e deboches, como é o caso da lei de 1990 que determina que o presunto é exclusivamente o produto obtido do pernil suíno, cujo texto foi também, pasmem, objeto de um projeto de lei para acrescentar que aquele obtido da coxa e sobrecoxa do peru seria denominado de presunto de peru. A lei que determina o que é um presunto ainda está valendo, já o projeto de lei foi retirado, ainda bem. Mas não se esqueça: é importante você saber o que é um presunto.

Tem outra que, suponho, tratava-se de sugestão para fabricação de bebida brasileira para exportação, e que deve ter sido publicada por engano no Diário Oficial de 31 de outubro de 2008, mas está lá com todo vigor.

Pela sua importância, eis a pérola: "Art. 4º Os ingredientes utilizados na produção da caipirinha são: a) ingredientes básicos – cachaça, limão e açúcar: 1. o açúcar aqui permitido é a sacarose – açúcar cristal ou açúcar refinado -, que poderá ser substituída total ou parcialmente por açúcar invertido e glicose, em quantidade não superior a cento e cinquenta gramas por litro e não inferior a dez gramas por litro, não podendo ser substituída por edulcorantes sintéticos ou naturais; 2. o limão utilizado poderá ser adicionado na forma desidratada e deverá estar presente na proporção mínima de um por cento de suco de limão com no mínimo cinco por cento de acidez titulável (sic) em ácido cítrico, expressa em gramas por cem gramas; b) ingrediente opcional – água: 1. a água utilizada deverá obedecer às normas e aos padrões aprovados pela legislação específica para água potável e estar condicionada, exclusivamente, à padronização da graduação alcoólica do produto final." Mas
isso não é tudo, no final regulamenta ainda a jurubeba doce, a batida e outras bebidas daqui do lado de baixo do Equador.

Tirando o lado folclórico, vamos à questão mais preocupante que é a falta de regulamentação das leis produzidas com responsabilidade e pensando no bem estar e na proteção da população e que carecem de regulamentação, consolidação ou, simplesmente, não são aplicadas por pura falta de fiscalização do Poder Público, tanto no âmbito federal, quanto nos estados e municípios. Leis importantes ficam no limbo e o cidadão? Bem, este fica a ver navios.

O problema se torna mais grave ainda porque as leis não são revisadas, o sistema de consulta não é atualizado, nem tampouco consolidado. Não se consegue saber se determinado tema já foi contemplado por alguma lei e, se existe a lei, não se consegue saber se ela está valendo ou se já foi substituída por outra. Sem falar nos temas que estão contemplados por leis que já caducaram. Leis da época do Estado Novo, como é o caso daquela que trata de punição aos maus tratos aos animais que foi sancionada em 1934 e estabelece multa em CR$. É isso mesmo, CR$, ou seja lá o que isso signifique.

Aqui no Distrito Federal temos leis que nunca foram aplicadas. É o caso da Lei que institui o Plano de Saúde dos servidores do GDF que está engavetada e que poderia esafogar a rede pública de saúde se fosse regulamentada e aplicada. São 137 mil servidores em atividade no DF que estão sendo atendidos nos postos de saúde e hospitais públicos e que poderiam usar os hospitais e clínicas privados se lhes fosse dada essa alternativa.

Outra que é muito importante e que dorme na gaveta do GDF é a que cria o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, cuja receita seria de 2% do ICMS sobre produtos como embarcações esportivas, venda de cigarros, bebidas alcoólicas, jóias, perfumes, armas, entre outros. É uma lei que pode ser muito útil no momento atual em que o governo federal se propõe a acabar com a miséria no país e que poderia ter começado com as mais de cem mil pessoas abaixo da linha de pobreza do DF. A não ser que o GDF não esteja afinado ao projeto de país sem miséria da presidenta Dilma e, portanto, não inclua os pobres do Distrito Federal. 

Ou que o país sem miséria não passe de uma retórica e tenha sido elaborado apenas para fazer um bom marketing, um slogan de peso. E o que a fábrica de leis tem a ver como o que falei? Acho que tudo. Mesmo com tantas leis e normas, a cada semana os parlamentares são cobrados, principalmente pela mídia, a produzir e votar novas leis. Assim, o serviço de fiscalização que deveria ser feito pelo parlamento, fica sempre em segundo plano. A cobrança é sempre por leis e mais leis.
O parlamento precisa se adequar aos novos tempos. Ser ágil, facilitar a vida do cidadão que não podendo desconhecer as leis, tem que ter um acesso fácil, seguro e simples a todo esse arcabouço legal. O parlamento precisa fomentar a cidadania e a cidadania tem a ver com direitos e direitos só valem quando são respaldados por leis eficientes, eficazes e, sobretudo, quando são aplicadas diariamente.

O legislativo precisa confirmar sua importância, sob pena de acabar sendo uma peça folclórica, além de cara. Um armazém de mercadoria inútil. E o mínimo que se espera dos governantes é que cumpram as leis ou as revoguem, porque o exemplo tem sempre que vir de cima.
Hoje, como esse exemplo ainda não vem de cima, tem prosperado a "lei de Gerson", na qual vale a esperteza, o dá um nó nos outros, quando deveria valer a cidadania e o respeito às leis. Como bem disse Albert Camus: "Não há ordem sem justiça!". No Brasil de hoje, vale tudo!

http://brasil247.com.br/pt/247/poder/14082/O-exemplo-que-nao-vem-de-cima.htm

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