O Brasil deve abolir esse crime sem vítima, motivado tão-somente por valorações moralistas e religiosas que recriminam o comércio do sexo entre pessoas adultas e capazes. Um resquício de nosso Código Penal autoritário que precisa ser superado.
Por Túlio Vianna
Há um princípio elementar de Direito Penal democrático que
veda que crimes sejam criados para punir condutas meramente imorais. Em
estados democráticos de direito o legislador não é livre para
criminalizar qualquer ação, mas somente pode proibir condutas que lesam
ou colocam em risco de lesão bens jurídicos alheios, tais como a vida, a
saúde, a liberdade, o patrimônio e outros direitos fundamentais. Esta
limitação ao poder do legislador, conhecida como princípio da
lesividade, é uma importante garantia de que as minorias não serão
submetidas à imposição dos valores morais e/ou religiosos de uma maioria
intolerante.
Esta garantia é especialmente relevante quando se trata de crimes
sexuais. Uma lei que proibisse, por exemplo, a prática do sexo anal,
seria inconstitucional, mesmo se hipoteticamente aprovada pela maioria
absoluta da Câmara e do Senado e referendada pelo voto popular. Isto
porque democracia não se confunde com ditadura da maioria e a
Constituição da República garante em seu art.5º, VIII, que “ninguém será
privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção
filosófica ou política”.
No Estado Democrático de Direito a maioria não
pode impor suas convicções religiosas ou morais à minoria. Nossa
Constituição reconhece a autodeterminação dos indivíduos e impede que
comportamentos consensuais entre pessoas maiores e capazes que não
causam dano a terceiros sejam criminalizados.
Lamentavelmente, nosso Código Penal não compartilha a ideologia
política que inspirou nossa Constituição; muito pelo contrário: sua
principal influência foi o código penal fascista italiano de 1930
(Codice Rocco). E, como em todo código penal autoritário, o respeito à
autodeterminação humana é substituído por uma pretensa tutela de valores
abstratos como “bons costumes” e “moralidade pública”. E é em razão
desta nefasta herança histórica, infelizmente ainda não rejeitada pelo
Supremo Tribunal Federal, que as casas de prostituição ainda são ilegais
no Brasil e seus proprietários podem ser punidos como criminosos.
Crime sem vítima
A prostituição em si não é crime no Brasil. A troca de sexo por
dinheiro ou qualquer outro tipo de pagamento é plenamente lícita no
país. Paradoxalmente, porém, é crime manter estabelecimentos onde
prostitutas possam prestar estes serviços sexuais (art.229 do Código
Penal).
Esta visível incoerência do sistema penal, que tolera a prostituição
quando praticada individualmente, mas reprime a prostituição coletiva
nos prostíbulos não se sustenta juridicamente, pois não há um bem
jurídico a ser tutelado e muito menos uma vítima a ser protegida. Tudo o
que há são argumentações exclusivamente morais que partem de valorações
religiosas do tipo “o corpo é sagrado e não deve ser comercializado” ou
“o sexo deve ser praticado somente na constância do matrimônio, com
amor, e única e exclusivamente para procriação”.
Na impossibilidade constitucional de se impor concepções morais por
meio de crimes, muitos acabam procurando disfarçar seus argumentos
moralistas contrários à legalização da prostituição na tutela de uma
suposta liberdade sexual da própria prostituta. Afirmam que a
prostituição não é uma escolha da mulher, que seria levada a vender seu
corpo ora por violência sexual, ora por necessidades econômicas.
Trata-se, evidentemente, de duas hipóteses bastante distintas. Se a
vítima foi forçada a se prostituir, não se trata de mera prostituição,
mas de estupro ou de escravidão para fins sexuais, e por estes graves
crimes o autor deve ser punido, já que houve uma inequívoca lesão ao
direito à liberdade sexual da vítima.
Situação bastante diversa é quando a mulher, por necessidade
econômica, é levada a se prostituir. Aqui não há vítima, pelo menos no
sentido jurídico do termo, já que a mulher fez uma escolha por esta
forma de ganhar a vida. É bem verdade que esta escolha pode não ter sido
voluntária e que suas condições socioeconômicas talvez tenham sido
determinantes em sua decisão, mas certamente foi uma escolha livre.
Escolhas livres não são necessariamente voluntárias, no sentido de serem
determinadas por um desejo íntimo independente das condições
socioeconômicas em que se vive.
O sistema capitalista é bastante
perverso, já que permite a muito poucas pessoas escolherem
voluntariamente se preferem ser médicas ou faxineiras; engenheiras ou
serventes de pedreiro; advogadas ou traficantes de drogas; atrizes ou
prostitutas, mas não se pode cair no determinismo simplista de afirmar
que suas escolhas não sejam livres. Do contrário, boa parte dos
traficantes de drogas e ladrões não poderiam também ser presos, pois
seus crimes também não seriam escolhas livres. E o crime de casa de
prostituição deveria ser imputado não ao proprietário, mas ao Estado que
não deu condições socioeconômicas para a mulher optar por uma outra
carreira.
Vê-se, pois, que não se pode querer punir os donos e donas de casas
de prostituição por meio do singelo argumento de que exploram as
prostitutas que não estão ali por escolhas voluntárias, pois no sistema
capitalista, por definição, é isso que fazem todos os proprietários dos
meios de produção: o fazendeiro explora o camponês porque é dono da
terra, o industrial explora o operário porque é dono das máquinas; o
comerciante explora o balconista porque é dono da loja. E o(a) dono(a)
do prostíbulo há de explorar também a prostituta por ser dono(a) do
quarto e da cama.
A questão não é a exploração do trabalho em si, mas a condenação
moral de um trabalho que tem por fim a satisfação sexual de alguém. O
que incomoda é a herança moral cristã que condena como pecado uma
profissão que em vez de produzir riqueza, produz prazer.
Moralismo que restringe direitos
Afastado qualquer tipo de moralismo, a prostituição é uma profissão
como qualquer outra que pode ser explorada economicamente e deve ser
regulada pelo Estado para que as prostitutas possam ter direitos
trabalhistas e previdenciários como qualquer outro trabalhador. É bem
verdade que a profissional do sexo já pode hoje pagar a previdência
social como autônoma e se aposentar. Manter as casas de prostituição na
ilegalidade, porém, equivale a impedir a prostituta de ser trabalhadora
assalariada, negando-lhe, por questões exclusivamente morais, os
direitos constitucionais a salário mínimo, seguro-desemprego, repouso
semanal remunerado, férias anuais e licença saúde e gestante.
Na Europa, as casas de prostituição são legalizadas e regulamentadas
na Alemanha, Holanda, Suíça, Áustria, Hungria, Grécia e Turquia e, na
América Latina, estes estabelecimentos são legais no México, Bolívia,
Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. Países que
superaram o moralismo em prol da dignidade desta parcela de
trabalhadores que merece o mesmo respeito de qualquer outra atividade
humana.
A criminalização dos prostíbulos não evita a prostituição, mas tem o
efeito de penalizar as prostitutas, não só negando-lhes os direitos de
trabalhadoras assalariadas, mas principalmente forçando-as a se
prostituírem nas ruas, onde ficam muito mais vulneráveis às agressões de
clientes e criminosos. É sabido que nos países onde a prostituição é
legalizada, muitas agressões às prostitutas são evitadas, pois os
prostíbulos possuem seguranças e até mesmo “botões de pânico” nos
quartos que são acionados quando há algum tipo de ameaça.
A legalização das casas de prostituição é uma necessidade de política
pública para reduzir a violência principalmente contra mulheres, mas
também contra travestis e homens que prestam serviços sexuais e são
alvos das mais variadas agressões motivadas pelo preconceito social
legitimado e incentivado por uma lei criminal que condena o comércio do
sexo.
A pena não escrita à qual o Estado condena as prostitutas é a
ausência de proteção contra todo tipo de agressões por parte de seus
clientes; seu julgamento moral é o mais perverso, pois não é feito
diante de um tribunal com oportunidade de defesa, mas perante as ruas,
onde é julgada por sua própria sorte. A pena alternativa que lhes resta,
diante da omissão estatal, é buscar proteção na ilegalidade dos
cafetões e prostíbulos, que não prestam contas de suas atividades a
ninguém e ficam livres para explorar seu trabalho sexual em um
capitalismo totalmente selvagem sem qualquer tipo de regulação estatal.
O risco constante de serem estupradas e agredidas ou a semiescravidão
no trabalho em prostíbulos são as penas morais não escritas a que as
prostitutas estão hoje condenadas. A criminalização da prostituição, ao
longo da história, nunca conseguiu pôr fim ao comércio sexual, mas
sempre serviu bem ao propósito não declarado de estigmatizar e causar
sofrimento àquelas que desafiam com seu trabalho a moralidade dominante
que recrimina o sexo casual como forma legítima de prazer.
FONTE:http://www.revistaforum.com.br/conteudo/detalhe_materia.php?codMateria=9349/ Legalizar%20as%20casas%20de%20prostitui%C3%A7%C3%A3o
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