Na contramão da sociedade contemporânea, homens e mulheres
optam por uma vida mais simples. Eles garantem que são mais felizes.
Conheça as histórias.
Você pode ter passado a vida inteira, ou parte dela, ouvindo a
expressão: tempo é dinheiro. Conhecido de perto um universo em que ter
do “bom e do melhor” é sinônimo de uma vida sossegada. Também deve ter
escutado, e acreditado, que comprar roupas, sapatos e supérfluos alivia o
estresse, principalmente, das mulheres durante a tensão pré-menstrual
(TPM).
Que shopping é e será um dos melhores lazeres desta vida moderna.
Agora, suponha que tudo isso virasse de cabeça para baixo. Em nome da
simplicidade do ser, homens e mulheres, de idades diferentes,
chacoalharam esses velhos conceitos cada vez mais impostos à sociedade e
optaram, sem culpa e com leveza, por uma vida simples. Acreditam que
precisam de pouco para se satisfazer e asseguram que o lucro com tudo
isso não se vende nem se troca, e tem nome: felicidade.
Não se trata de um movimento, mas um fenômeno sem causa única e
nenhuma regra. Essas pessoas estão, aos poucos, caminhando por conta
própria em busca da simplicidade, sem fazer publicidade disso. Alguns
mudaram de cidade, outros conseguiram isso morando em uma capital como
Belo Horizonte. E não estão sós.
A tal simplicidade já chama a atenção
do mundo, já que grandes homens, que poderiam esbanjar mordomias,
disseram “não” a elas e a tudo que elas remetem.
O ex-guerrilheiro José Mujica,
atual presidente do Uruguai, por exemplo, mora em uma casa deteriorada
na periferia de Montevidéu, sem empregado nenhum. Seu aparato de
segurança: dois policiais à paisana estacionados em uma rua de terra.
Outro que recebeu os olhares do planeta é o papa argentino Francisco,
que despertou a simpatia dos católicos e até mesmo de quem não segue a
religião, por quebrar protocolos da Igreja.
Sabe-se que antes de chegar
ao cargo mais alto da instituição, no dia 13, quando foi escolhido como
papa, ele andava de metrô e ônibus por Buenos Aires e cozinhava a
própria comida. Já como líder do catolicismo, ele dispensou o carro
oficial ao celebrar uma missa e caminhou pelas ruas, aproximando-se mais
do povo.
BONS EXEMPLOS - Mas não é preciso ir a Roma ou ao Uruguai para conhecer pessoas que
apostam nesse modo de vida. O Bem Viver conheceu bons exemplos dessa
vida simples. São guerreiros que nadam contra a maré em uma sociedade
que, cada vez mais, valoriza o supérfluo como a garantia para ser feliz.
“Hoje, o que predomina é o consumismo mais exacerbado, mas se há grupos
buscando essa simplicidade é um sintoma de que essa exaustão das buscas
frenéticas acaba não levando a lugar nenhum”, comenta o psicólogo,
psicanalista e doutor em filosofia pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) Carlos Roberto Drawin.
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Advogada
Débora Paglioni, de 23 anos, acredita que ser simples é uma postura que
tem a ver com bem-estar e consciência (Foto: Estado de Minas).
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Certos de que há muito mais quando se tem menos, os entrevistados
para esta reportagem servem como verdadeiras lições de vida. Maria
Madalena Aguiar, de 66 anos, diz ser “feliz demais” em levar uma vida
baseada na simplicidade e acredita, por exemplo, que está mais perto de
Deus.
Já Guilherme Moreira da Silva, de 56, mora em um sítio em Macacos,
na Grande BH, e garante que “ser simples” traz a ele conforto, alegria,
prazer e felicidade.
A mesma sensação tem Priscila Maria Caliziorne
Cruz, de 23, que ao optar por esse estilo de vida diz ter ampliado sua
consciência, ficando mais inteira e presente na vida. “A simplicidade
nos obriga a olhar para nós mesmos”, comenta o frei Jonas Nogueira da
Costa, que desde menino se encantou pela vida de São Francisco de Assis e
adotou a espiritualidade franciscana.
Para a advogada Débora Paglioni,
de 23 anos, ser simples vai muito além de ter dinheiro. “Tem a ver com
bem-estar e consciência”, afirma.
SOMENTE O NECESSÁRIO - Carro, só ser for para locomoção. Telefone é para se comunicar, não
precisa de touch screen nem aplicativos mirabolantes. Roupas ou sapatos
novos somente quando forem de extrema necessidade, afinal, para quê
mais? Comer bem não é ir a restaurante refinado, mas aquilo que é feito
em casa. Ter uma vida simples passa por muitas dessas posturas, que não
são regras.
Mas quem decide viver com o que é necessário nega o que hoje é tão
valorizado, como a corrida disparada pelos melhores celulares, casa,
carros e as mais belas joias.
E acaba consciente de que o tempo e a
energia investidos para a aquisição de coisas podem minguar as
oportunidades de conviver com o outro, de buscar a espiritualidade,
autoconhecimento e senso de comunidade.
É como se essas pessoas se
abrissem mais para o mundo ao seu redor e dissessem: “Desapeguei”.
Talvez por isso, elas são serenas, sorridentes e leves, vivendo somente
com o necessário, aquilo que para elas é essencial.
Esse desapego e vontade de viver somente com o que precisa não é algo
que a humanidade conheceu hoje. O psicólogo, psicanalista e doutor em
filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Carlos
Roberto Drawin destaca que esse comportamento é antigo e vem desde antes
do cristianismo.
“Vem de uma sabedoria grega. Não é só no sentido de
não ter bens materiais, mas não transformá-los em uma tirania.” Ele
conta que existia uma corrente da filosofia grega, o chamado estoicismo,
que mostrava que o homem só atinge a felicidade se ele for livre, ao se
livrar das dependências dos bens materiais. “Isso foi seguido tanto por
um escravo quanto pelo imperador.”
De tanto desapegar desses bens, Guilherme Moreira da Silva, de 56
anos, é chamado de Mazzaropi pelos amigos, em alusão ao cineasta, ator
de rádio, TV, de circo, cantor e diretor Amácio Mazzaropi, que, mesmo
rico, foi conhecido como o gênio da simplicidade.
Ele marcou a história
do cinema nacional ao mostrar personagens simples e uma linguagem bem
próxima do povo. Guilherme não optou pela arte. Desde menino, sofria de
bronquite e a medicina não lhe dava esperança de cura. Por meio de uma
vida que ele mesmo chama de alternativa, conseguiu se livrar da doença,
desafiando até o diagnóstico médico.
Nascido e criado em Belo Horizonte, há 30 anos Guilherme se mudou
para São Sebastião das Águas Claras, mais conhecido como Macacos, na
Grande BH. Formado em arquitetura e especializado em paisagismo, ele
morou na Espanha por um ano.
Mas foi em Macacos, em um sítio em meio à
natureza, que se encontrou. Por 15 anos, morou ali sem energia elétrica.
Ele diz até hoje não comprar roupas e só usar aquelas que seus irmãos
lhe dão. “Não atribuo grandes valores ao materialismo. Tenho uma
caminhonete porque preciso dela para trabalhar.”
Guilherme hoje mexe com produtos naturais, vende pães integrais e
come tudo o que planta. Onde mora não há internet. “A minha bronquite
que me incomodava muito. Queria uma vida saudável. Esse modelo que
adotei tem raízes profundas em querer sobreviver e gostar da vida.
Chegou o momento em que o mais importante era a qualidade do ar que
respirava, o contato com a terra e a comida que comia.”
Em uma casa de alvenaria sem luxos nem precariedade, Guilherme tem
uma televisão, que de vez em quando é ligada. “A vida pode ser muito
mais simples. A busca por ter tudo, trocar o velho pelo novo, traz
desconforto. A sociedade nunca está satisfeita.” Para ele, a vida no
campo traz essa simplicidade, alegria, conforto e prazer.
ESFORÇO - Professor do curso de ciências sociais da Pontifícia Universidade
Católica (PUC Minas), Ricardo Ferreira Ribeiro diz que hoje as pessoas fazem um esforço danado para ter renda e, por outro lado, geram um estresse, acúmulo de trabalho e problemas de saúde.
“A opção pela vida simples tem sido mais singela, há menos requinte,
mas exige menos esforços.” Ele lembra que os hippies chegaram a optar
por esse modo de vida, como crítica ao consumismo. “Esse modo de viver
aproxima mais as pessoas, cria-se uma empatia.”
Para o frei Jonas Nogueira da Costa, de 37, viver com pouco se
aprende ao estar perto daqueles que têm poucas condições financeiras. De
família simples e católica, ele sempre participou das atividades da
igreja de Três Rios, sua cidade natal, no interior do Rio de Janeiro, o
que despertou sua vontade de ser padre.
Em 1995, entrou para a Ordem dos
Frades Menores, motivado pelo exemplo de São Francisco de Assis, que
dedicou a vida à simplicidade e aos pobres. “A proposta de simplicidade,
de viver como irmão e ter uma vida de oração são pilares que me
encantaram”, diz. A simplicidade para Jonas é entendida como partilha.
“Você não pode chegar a Deus com títulos acadêmicos, roupas e outros.
Deus é simples.”
O frei conta que a principal mudança que sentiu na sua opção devida
foi no conceito de posse. “As coisas que eram da minha família
pertenciam a eles e a mim. Hoje, tenho o conceito do nosso.” Suas
posses, segundo ele, são os livros. Não se importa com roupas e compra
só o necessário. “A simplicidade tem o campo prático e político.
No
primeiro, é o contato com as pessoas mais simples e afetos com as
plantas e animais. No segundo, é a denúncia do consumismo que gera
frustrações.”
Ele ensina que a vida simples permite o contato consigo mesmo. “Nos
obriga a olhar para nós mesmos e ao nos depararmos com o ser humano que
somos nos libertamos das grandes tentações do consumismo.” O grande
ganho para o frei é a felicidade como comunhão, prazer nas pequenas
coisas, estar bem consigo mesmo. “Temos que fazer o que gostamos. A
minha opção me faz bem, humano e feliz.”
Para o frei, quem segue a vida baseada na simplicidade,
independentemente da religião, tem que aprender a escutar os pobres
materialmente e socialmente. “Eles são os nossos mestres. Há muita coisa
que dissemos que são fundamentais para nós, e vemos que outras pessoas
conseguem viver sem aquilo.
Às vezes temos tudo e não abrimos mão de
nada, e esse pobre consegue sorrir e falar de Deus. Por trás disso, há
uma sabedoria. Não há uma receita pronta para essa vida simples. Cada um
tem que fazer a própria síntese”, aconselha.
Estilo de vidas - Existe um movimento chamado simplicidade voluntária, que é um estilo
de vida no qual os indivíduos conscientemente escolhem minimizar a
preocupação com o “quanto mais melhor”, em termos de riqueza e consumo.
Seus adeptos escolhem uma vida simples por diferentes razões, que podem
estar ligadas a espiritualidade, saúde, qualidade de vida e do tempo
passado com família e amigos, redução do estresse, preservação do meio
ambiente, justiça social ou anticonsumismo.
Algumas pessoas agem
conscientemente para reduzir as suas necessidades de comprar serviços e
bens, e, por extensão, reduzir também a necessidade de vender o seu
tempo. Alguns usarão as horas a mais para ajudar os seus familiares ou a
sociedade, ou sendo voluntário em alguma atividade.
Compra consciente - Mudar os hábitos de consumo e só adquirir produtos de que realmente precisa é uma opção de vida de quem busca ser mais saudável.
Não é preciso sair da capital ou se dedicar integralmente ao
sacerdócio para ter uma vida simples. Essa opção de vida, apesar de a
luta ser ainda maior, é bem possível na cidade grande, mesmo com as
tentações do consumo e seus exageros bem próximos.
A simplicidade,
muitas vezes, está na essência da alma e em atitudes conscientes, e não é
preciso radicalismo para chegar até ela. O professor do curso de
ciências sociais da Pontifícia Universidade Católica (PUC Minas) Ricardo
Ferreira Ribeiro diz que essa opção de vida pode ser uma certa crítica
aos valores ligados à ostentação e ao padrão de vida de pessoas que não
conseguem abrir mão dos bens materiais. “A gente acaba consumindo muitas
coisas, para quê? Qual a finalidade desse bem que se adquire?”,
provoca.
Foram essas as perguntas que motivaram a psicóloga Marina Paula Silva
Viana, de 28 anos, a enfrentar um desafio: um ano sem compras. De junho
de 2011 até junho de 2012, ela não comprou nada de supérfluo e criou um
blog [http://umanosemcompras.blogspot.com.br/] na internet relatando sua experiência durante esse período.
A
página levou o nome do desafio, Um Ano sem Compras. Mineira de Belo
Horizonte, a jovem mora desde 2008 em Curitiba e achava que a proposta
seria difícil. “O mais complicado é conter o primeiro impulso. Mas vi
que isso é bem possível.” O dinheiro que usava para comprar roupas,
bolsas, calçados e cosméticos foi gasto em lazer. “Sempre gostei dessa
opção de vida, e queria fazer essa experiência. Você percebe que tem
outras prioridades na vida.
Passei a fazer mais programas ao ar livre, a
aproveitar atividades intelectualizadas. Quando estamos imersos no
consumo, deixamos o que nos dá prazer em segundo plano. Passada essa
experiência, hoje compro bem menos e me foquei no que é essencial para
mim.”
Como psicóloga, Marina conta que muitos pacientes trazem para o
consultório frustrações vindas do consumo. “As pessoas estão consumindo
mais. E isso acaba tendo uma função psicológica. Elas acabam acreditando
que a personalidade está ligada ao que consomem.”
Formada em teatro,
produtora do curso de educação gaia em BH e estudante de letras na
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Priscila Maria Caliziorne
Cruz, de 23, diz que a vida simples vem dos pilares que recebeu em casa e
das suas buscas e anseios. “São escolhas diárias. Encontrei em BH, no
meio urbano, uma alternativa mais simples para viver.”
Ela conta que o segredo dessa opção está na consciência do que se
busca. “Sabemos que ter um telefone é importante para atender a
necessidade. Mas nem sempre essa necessidade por um produto acompanha
moda e o que está no mercado.”
Há 10 anos, a jovem não entra em
shopping, pois, segundo ela, é um ambiente que a incomoda,
principalmente pelo objetivo daqueles que estão ali e os tipos de
relações estabelecidas. “Participo de um encontro anual de trocas de
roupas. Para a minha alimentação, participo de redes de agricultura
urbana, que são alimentos produzidos na cidade. Compramos diretamente
dos produtores, sai mais barato e não acumula tanto valores.”
A maior preocupação de Priscila é com o meio ambiente. Ela procura
ter atitudes sustentáveis, como reciclagem de lixo, usar carona ou
transporte público. “Essa opção de vida me faz sentir em harmonia comigo
mesma.
Quando fiz essa escolha, é como se tivesse responsabilidade com
as pessoas ao meu redor.” Ela diz que o encontro com esse modo de vida
foi motivado por uma busca de vida saudável, da saúde do corpo e da
mente . “Nunca fiz escolhas motivada pelo financeiro.”
BENS MATERIAIS - Por mais que as quatro filhas insistam, Maria Madalena Aguiar, de 66
anos, fica bons anos sem comprar roupas. Prefere consertar as que tem e
não se importa com a idade delas. Um vestido e um tamanco já estão de
bom tamanho.
Mesmo morando na capital, a essência, adquirida na
infância, na roça e durante os três anos que morou em um convento em São
Paulo, ela mantém intacta e com orgulho. Diz já ter conhecido muitas
pessoas que ostentam bens materiais. “É de dar dó”, comenta.
Certo dia, uma de suas filhas a chamou para sair. Ela logo pegou a
bolsa de pano e disse estar pronta para acompanhá-la. A filha sugeriu
que mudasse de roupa. “Você quer o que visto ou a minha companhia?”,
respondeu Madalena.
Apaixonada pelas poesias que cria, ela conta que
prefere andar de ônibus ou a pé a ir de carro. “Temos pernas é para
andar.” Compras com ela, só o essencial. O seu lazer é mexer na terra,
com as plantas e aprender com elas. “A vida simples é uma sabedoria”,
avisa. Para ela, ajudar o outro a ter um coração bom são as grandes
riquezas do ser humano.
Madalena conta a lenda que lhe serve de inspiração. “Uma vez, um
turista viajou para conhecer um grande sábio. Quando chegou, disse a ele
que queria conhecer seus móveis. O sábio, muito tranquilo, mostrou que
só tinha uma cama e uma cadeira e o convidou a entrar.
O homem não
aceitou, disse estar só de passagem. O sábio respondeu: ‘Eu também’.”
Para essa senhora, a história aponta o que devemos pensar antes dos bens
materiais serem nossos donos. “Caixão não tem gaveta. Estamos aqui só
de passagem.” (LE)
Viver com o essencial - Este mês, o New York Times publicou um artigo sobre a vida de Graham
Hill, que vive em um estúdio de 420 pés. Ele tem seis camisas, 10
tigelas rasas que usa para saladas e pratos principais. Não tem um único
CD ou DVD.
Era rico, tinha uma casa gigantesca e cheia de coisas –
eletrônicos , carros e eletrodomésticos. “De uma certa forma, essas
coisas acabaram me consumindo”, disse na entrevista.
Em 1998, em
Seattle, vendeu sua empresa de consultoria de internet, Sitewerks, por
muito dinheiro e passou a comprar muito. Entre as compras, um Volvo
preto turbinado.
Mas tudo isso passou a incomodá-lo e a ficar sem graça.
E ele decidiu viver somente com o essencial.